Monday, October 24

O INSUSTENTÁVEL PESO DO PARADIGMA DE JUIZ

Pouco espaço e atenção são dedicados àquele que, inevitavelmente, é o protagonista da acção processual, isto é, o juiz. Se, por vezes, algo se diz sobre a sua competência técnica ou actividade processual, muito pouco se concede à pessoa do juiz. Este alerta é sublinhado pelo Cardeal Mário F. Pompedda, no discurso no início do Ano Académico do Studium Romanae Rotae de 06 de Novembro de 2002 ao eleger como tema de discurso uma pequena reflexão sobre o perfil do “Juiz Eclesiástico”.
E é curioso para nós, juízes da sociedade civil, habituados a referirmo-nos à judicatura como o exercício de um sacerdócio – utilizando o termo numa perspectiva quase perniciosa e em heresia, diria certamente o Cardeal – descobrir qual deve ser, segundo este autor, o perfil de um juiz eclesiástico.
De um tríplice perfil ali delineado interessa-nos destacar, neste momento, uma característica essencial: o perfil humano, que por sua vez se desdobraria em duas vertentes fundamentais, traduzido, por uma lado, na capacidade de se julgar a si próprio com serenidade e maturidade, e, por outro lado, na capacidade de julgar o próprio tempo.
Quanto a esta última vertente não resistimos a transcrever uma passagem desse discurso:
“(…) faz parte da maturidade pessoal também a capacidade de julgar o próprio tempo. Com efeito, isto não é simplesmente reconduzível ao conhecimento de factos e acontecimentos. Trata-se de conhecer a cultura do próprio tempo. Já não é por ter ouvido dizer, mas porque dela participa”.
Referi-me a um sacerdócio pernicioso e herético porque quando utilizamos esta expressão, na maioria das vezes, pretendemos idealizar o juiz como um indivíduo, voluntária ou involuntariamente, retirado do mundo em que vive. Pois bem, pasme-se, é do sacerdócio que nos vem a lição de que um juiz deve ser um homem do seu mundo e que desse mundo deve participar activamente.
Contudo, poderá não ser esta última a orientação que vai tomando corpo no nosso sistema judiciário.
Recordo-me, como se de uma imagem longínqua se tratasse (contudo bem recente), do esforço e empenho que os responsáveis pelo Centro de Estudos Judiciários, ao tempo em que por lá passei, dedicavam à interacção do futuro juiz com o seu mundo, quer proporcionando encontros no próprio CEJ com personalidades da cultura, simples concertos de piano à hora do almoço ou visitas a locais de interesse.
Nada de jurídico nesta postura, diria, porém, tudo de humano no humanismo que a função exige à pessoa do juiz.
Na verdade, mesmo para estar no Mundo – a geração espontânea, como é sabido, é uma excepção –, a regra é de que é preciso lá ser colocado ou criado por outras forças.
O excesso de pendência processual que se acreditava ser conjuntural é afinal estrutural e generalizado por todo o País.
O crucial mas incómodo tema da contingentação processual parece ser tabu, não é tratado com a seriedade e urgência que desde há muito merece, condicionando de modo determinante a condição pessoal do juiz, desviando as atenções do essencial e prejudicando a objectivação do desempenho do juiz e do sistema.
O esforço e entrega pessoal total que ainda hoje – sim, ainda hoje – muitos de nós vêm dispensando à função, na esperança de dias melhores, parece também não ser conjuntural mas sim estrutural e é agora erigido em paradigma sobre o qual assenta o sistema.
Na sequência da recente discussão gerada pela deliberação tomada na Assembleia Geral Extraordinária da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, em Coimbra a 18 de Junho de 2005, o Conselho Superior da Magistratura emitiu duas deliberações, de 30 de Junho e 14 de Julho de 2005, que merecem particular atenção a este respeito.
Na primeira deliberação, a de 30 de Junho de 2005, tirada com três votos de vencido, na parte que particularmente agora nos interessa, no ponto 1. o Conselho faz questão de “lembrar o esforço, a dedicação e o empenho dos Magistrados Judiciais no funcionamento dos Tribunais como órgãos vitais do Estado de Direito, reconhecidas as dificuldades funcionais e normativas vividas no actual sistema de justiça, o qual assenta em grande parte naqueles e demais intervenientes da justiça”.
Esta seria uma postura extraordinária, requerida por circunstâncias também elas extraordinárias.
Quanto a uma eventual redução dessa entrega pessoal extraordinária, nos votos de vencido, publicados com esta deliberação, alude-se a uma velada greve de zelo – declaração de voto subscrita pelo Exmº Vogal Prof. Doutor Carlos Ferreira de Almeida. Por outro lado, alerta-se os magistrados judiciais para a necessidade de que as posições que adoptem em defesa dos seus direitos profissionais – em si mesmas naturalmente legítimas – não se deverão traduzir em procedimentos e atitudes que na prática se revelem incompatíveis com o seu estatuto de titulares de um órgão de soberania – declaração de voto subscrita pelo Exmº Vogal Drº Luis Máximo dos Santos. Mais se apela no sentido de os magistrados judiciais não adoptarem as medidas de protesto aprovadas na assembleia geral a ASJP atendendo aos graves prejuízos que as mesmas acarretarão para o interesse público de administração da justiça, bem como para todos os cidadãos, lembrando que a deliberação do CSM deveria conter uma referência às competências para o exercício da acção disciplinar – declaração de voto subscrita pela Exmª Vogal Drª Alexandra Leitão.
Nesta perspectiva parece não ser admissível qualquer tipo de redução da entrega pessoal total.
Tal entrega pessoal total parece ainda ser vista como extraordinária na declaração de voto subscrita pelo Exmº Vogal Prof. Doutor Calvão da Silva, segundo o qual “(…) o elevado volume de serviço obriga os Senhores Juízes a trabalharem noite dentro e fins de semana, fora do espírito de funcionário público que cumpre o seu estrito horário. Mais: a qualidade do serviço em causa exige estudo, ponderação e reflexão aturados. É o que na grande maioria dos casos caracteriza a nossa magistratura que, com zelo, dedicação e denodo, não regateia os melhores esforços para com presteza fazer justiça, com sacrifício pessoal e familiar”.
A deliberação de 14 de Julho de 2005, sem declarações de voto que a acompanhassem, tem o seguinte teor:
“1º Reconhecer e enaltecer publicamente o paradigma do Juiz que, com zelo, dedicação e denodo, não regateia os melhores esforços para com presteza fazer Justiça, com sacrifício pessoal e familiar;”
“2º Reconhecer que sem a continuidade desse paradigma e dessa postura, a morosidade da Justiça aumentará”
“3º (…)”.
“4º (…)”.
O sacrifício pessoal e familiar é agora uma exigência do sistema que nele se apoia para declarar o modelo pessoal de juiz.
Procurei, em alguns documentos internacionais, pontos de referência que me permitissem identificar as linhas de força para a caracterização do juiz referência (ao nível pessoal).
Apenas por via indirecta se poderá tentar construir esta imagem a partir dos principais instrumentos internacionais.
O Estatuto Universal do Juiz e do Ministério Público, de 17 de Novembro de 1999, aprovado por unanimidade dos presentes na reunião do conselho central da União Internacional de Magistrados em Taipei, assumindo-se normas gerais mínimas refere no seu artº 5º que o Juiz deve ser e mostrar-se imparcial no exercício da sua actividade jurisdicional e desempenhar os seus deveres com moderação e dignidade, com respeito pela sua função e das pessoas envolvidas.
A MEDEL, Magistrat Européens Pour la Democracie et Les Libertés, no seu Élements D’Un Statut Européen de La Magistrature, Déclaration de Palerme de 16 de Janeiro de 1993, frisa a necessidade de serem respeitados princípios fundamentais relativos à independência da magistratura aprovados pelas resoluções da Assembleia Geral das Nações Unidas 40/32 e 40/146 de 29 de Novembro e 13 de Dezembro de 1985 (ponto 3), determina que o Estado deve fornecer à magistratura os meios suficientes ao seu bom funcionamento, especialmente no que concerne à sua formação inicial e permanente e, correndo o risco de ser tautológico, reafirma que os magistrados gozam, como os outros cidadãos, das liberdades de expressão, de credo religioso, de associação e assembleia, dispõem do direito à greve.
Tudo são linhas gerais de actuação, em grande parte de outros poderes do Estado, para que o magistrado judicial se possa realizar na sua função, para aquilo que se espera seja o seu desempenho, mas também como homem livre e independente, o que parece ser indissociável dessa sua função.
O paradigma de juiz parece ser, assim, um conceito que se vai construindo em cada momento histórico e em cada sociedade e será o espelho dessa sociedade porque constituirá um pilar fundamental do modelo de Justiça que nela se pratica.
Dele, do paradigma, poderá depender o sucesso ou insucesso do sistema de justiça.
A realização pessoal e familiar (ou falta dela) do juiz irá reflectir-se no desempenho não só em termos quantitativos mas sobretudo qualitativos.
A falta dessa realização traduz-se no pano de fundo ideal para a desmotivação e para a derrocada dos valores que devem presidir à actuação do juiz.
Do outro lado do Atlântico, numa cultura que nos é próxima e com a expressividade que lhes é peculiar e nos é cara, refere o Exmº Juiz de Direito da Comarca de Senador José Porfírio, no Estado do Pará, Brasil, reflectindo sobre esta mesma questão:
“Todas as pessoas deveriam saber antes de emitirem qualquer opinião a respeito do assunto, que a vida de um magistrado não é um mar de sonhos como a maioria pensa. O Magistrado é vergastado na sua tranquilidade, com a obrigação de dar uma solução justa. Que ele às vezes tem filhos sadios, às vezes com problemas de saúde, às vezes com defeito físico ou mental. Que o magistrado tem problemas, vícios, angústias, problemas conflitivos, tem desesperos, crises de amor, ódio, tem tudo o que qualquer pessoa normal tem. E acima disto, ele não nasceu magistrado”.
Tendo isto por certo, como tenho, julgo que deveremos reflectir sobre a solidez do Estado de Direito, quando o sistema de justiça assenta exclusivamente o seu peso ou disto faz paradigma, por tempo indeterminado, sobre os ombros de um juiz subtraído ao seu mundo, alienado do seu tempo, que se priva da sua vida pessoal e familiar, violando valores essenciais, por imposição funcional, nomeadamente deveres parentais (cujo respeito na respectiva jurisdição se esforça por impor ao cidadão).
Suportaremos este peso…?!

Pedro Faria de Brito, Juiz de Direito.

DIREITO DE GREVE E MAGISTRATURAS - Razões de direito e razões de facto

1. Está aberta uma polémica com as declarações do Sindicato dos Magistrados do Ministério público, e da Associação Sindical dos Juízes Portugueses sobre a realização de uma greve no mês de Outubro.
Fui convidado a dar a minha opinião sobre a matéria, o que vou fazer abordando-a numa perspectiva do direito em si mesmo, procurando uma legitimidade para essa greve, e numa perspectiva da justeza das razões invocadas.

2. Alguns analistas interrogam-se da “legalidade” de os magistrados fazerem greve, querendo com isso dizer que não lhes seria legitimo adoptar tal forma de luta visto o poder judicial ser um órgão de soberania, afirmando-se que nunca se viu o presidente da república ou o governo ou a assembleia da república fazerem greve.
Todavia estas alegações não têm qualquer sustentabilidade na Constituição que ainda é a matriz de todas as normas e a lei Fundamental nomeadamente no que toca aos direitos liberdades e garantias.
Vejamos:

3. Não há dúvida de que os tribunais, congregando dois elementos humanos na sua composição (juízes e magistrados do Ministério Público), são um órgão de soberania (artigo 202º, da Constituição).

Órgão de soberania esse com particularidades que importa recordar.

Desde logo é o único que não é eleito. Ainda assim, ninguém discute da sua legitimidade democrática. É que todo o voto é uma expressão democrática, mas a democracia não se limita ao voto.

Depois, é um órgão de soberania que “depende” orgânica e materialmente de um outro órgão de soberania, o Governo, através do Ministro da Justiça. Caso único, porquanto não existem ministros para a Assembleia da República ou para o Presidente da República. Isto é, a gestão administrativa, material, do “poder judicial” depende de um outro poder, o executivo. Podemos dizer de outro modo: os magistrados pertencem a um órgão de soberania, mas simultaneamente e em termos meramente administrativos são considerados “funcionários” do Ministério da Justiça.

Outra particularidade, (até agora não invocada para ser aplicável aos demais órgãos de soberania) é a da avaliação do desempenho ou serviço prestado. Por lei, os magistrados estão sujeitos a uma avaliação de mérito, em termos jurídicos, isto é, uma avaliação do desempenho funcional segundo regras previamente definidas, de acordo com critérios legais gerais e universais, e avaliação essa realizada por Conselhos Superiores onde, aliás, os demais órgãos de soberania têm assento! Ora, não há esta avaliação de mérito para os outros órgãos...nem estou a ver que a Assembleia da República, o Presidente da República ou o Governo pudessem/devessem ser escrutinados por um qualquer “Conselho Superior” onde participassem elementos de outros órgãos de soberania, nomeadamente do poder judicial. Não estou a falar da avaliação política, mas sim de uma avaliação de mérito!

De igual modo, veja-se o que se prevê para o exercício da acção disciplinar dos magistrados ao qual não estão sujeitos nem a Assembleia da República, nem mesmo o Governo.

Acresce que os magistrados são os únicos inseridos numa carreira profissional…o que se não verifica quanto aos ministros, deputados ou mesmo Presidente da República.
E o mesmo se diga, quanto ao recrutamento, sendo que os magistrados são os únicos a ingressar por meio de um concurso público!

4. Na análise da questão em apreço estes factores não podem ser olvidados, na medida em que constituem, de modo essencial, diferenças que imporão regimes diferenciados. Portanto a alegação de que os magistrados não poderiam fazer greve, porquanto os outros órgãos de soberania também o não podem fazer, não tem acolhimento na medida em que não há uma equiparação absoluta entre os vários órgãos de soberania, sendo possível encontrar regimes diferenciados que os distinguem.
Não que com isto se pretenda aceitar a “funcionalização” da magistratura, no que se esconde por debaixo dessa funcionalização, que mais não seria do que “subordinação”.

5. O Título II da Constituição abre sob a epígrafe “Direitos, Liberdades e Garantias”, no qual se insere o Capítulo III sobre “Direitos, Liberdades e garantias dos Trabalhadores”.

A Constituição impõe, pelo artigo 17º, o regime daqueles primeiros aos segundos.

Impõe, assim, e para além do mais, que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”(n.º 2 do artigo 18º). Tais restrições são admissíveis para os militares e agentes de segurança (vide artigo 270º), mas mesmo aí “na estrita medida das exigências próprias das respectivas funções”.

Não prevendo a Constituição, nem os Estatutos dos magistrados, qualquer restrição ao exercício do direito de greve, não há qualquer desconformidade legal no seu decretamento. Há outras restrições acolhidas nos Estatutos (veja-se, v.g., a proibição do exercício de actividades politico-partidárias de natureza pública), mas não a greve.

6. Um outro argumento que importa trazer à colação é o previsto sobre a liberdade sindical. Na justa medida em que a Constituição não admite restrições a este direito (cfr. supra), a coerência legal leva então a admitir a existência de associações sindicais e sindicatos nas magistraturas. Como acontece em modelos semelhantes à nossa organização judiciária, como é o caso da Itália.

A Constituição, no artigo 56º, confere aos sindicatos e associações sindicais certas atribuições, nas quais se destaca a de “participar na elaboração da legislação do trabalho” bem como a de “exercer o direito de contratação colectiva, garantido nos termos da lei”.

E a este respeito, refira-se já que, no âmbito dos procedimentos de aprovação de medidas pelo Governo e pela Assembleia da República, o SMMP e a ASJP foram convocados expressamente para a “negociação colectiva”, o mesmo é dizer que, até agora, não se colocou a questão da “legitimidade” destas entidades quanto ao exercício dos direitos que a Constituição e a lei lhes outorgam.

7. O direito de greve é o corolário desses direitos outorgados pela Constituição às associações sindicais como “defender e promover a defesa dos direitos e interesses” de quem representam (vide artigo 56º, n.º 1). Corolário constitucional, consagrado de forma solene e incisiva pelo artigo 57º.

8. Por sua vez a lei ordinária não faz qualquer restrição ou proibição quanto ao exercício do direito de greve pelos magistrados, nem o poderia fazer por absoluta ausência de norma constitucional habilitante para o efeito. E qualquer tentativa de alterar a lei ordinária, quanto a este aspecto, sem alterar previamente a Constituição, corresponderá a um “golpe constitucional” ao qual as instâncias competentes não deixariam, estou certo, de aplicar o juízo de desconformidade com a Lei Fundamental.

9. A conclusão quanto à primeira questão que nos propusemos analisar é, portanto, esta: o exercício do direito de greve pelas magistraturas tem plena consistência legal, quer no plano constitucional quer da lei ordinária.

10. Tínhamo-nos proposto analisar, também, se haveria fundamentos e justificação para tal exercício. Aqui não posso deixar de invocar a minha qualidade de Secretário-Geral da direcção do S.M.M.P., não só para isso ser levado em consideração no acto de ponderação objectiva, quer porque tal posição me traz o conhecimento cabal das situações que estão na base não só desta greve anunciada mas também de todo o descontentamento com as medidas aprovadas ou anunciadas pelo Governo.

11. Em audiência pedida pela direcção do S.M.M.P., no início do mandato, (Abril de 2005), a equipa ministerial da Justiça ouviu da nossa parte não só a apresentação de uma série de preocupações pela persistência dos problemas da área, como também ouviu a manifestação da disponibilidade em participar na procura das melhores soluções, contando nomeadamente com o conhecimento dos problemas e com a vontade de os resolver.

12. Porém, o Governo, e mais especificamente o Ministério da Justiça, limitou-se a apresentar sucessivamente um conjunto de medidas, visando atacar os já célebres “privilégios”, desde as férias judiciais, o congelamento da progressão de carreiras, o congelamento dos aumentos dos suplementos (“rasgando” protocolos celebrados com anteriores governos), a extinção do subsistema de saúde no âmbito dos Serviços Sociais do Ministério da Justiça.

E apesar de o SMMP ter sempre apresentado contrapropostas sérias, ponderadas e exequíveis, a tudo o Governo apenas respondeu de que não recuaria.

13. Mais: o governo tem vindo a alimentar uma campanha, através das declarações públicas dos seus vários responsáveis, de que se trata de privilégios injustificados, querendo com isso encontrar formas de afastar a crítica para a sua incapacidade de ir resolvendo os problemas estruturais da justiça, arremessando contra os magistrados responsabilidades que são, manifestamente, do poder político.

14. Demos diversas oportunidades ao Governo para se estabelecer um diálogo construtivo, (e não de surdos!).

Manifestámos a nossa disponibilidade para, em conjunto com todos os cidadãos, contribuir para a resolução dos problemas do país, e, de modo especial, os verdadeiros problemas da área da justiça. Estes, pelos quais nos batemos, continuam por resolver... como sempre!
A isto tudo o Governo vem respondendo com a arrogância de um poder derivado de uma maioria absoluta… que não é eterna, nem necessariamente lúcida.
A greve tem pois razões de facto para se fazer.

15. Por tudo o que se expõe dúvidas não tenho da legalidade e da justeza desta greve que se avizinha.


JORGE COSTA
PROCURADOR DA REPÚBLICA E SECRETÁRIO-GERAL DO SMMP

FÉRIAS JUDICIAIS - NO LIMITE

A distância de algum tempo entretanto decorrido, já vai tornando possível uma reflexão serena que busque as causas profundas que determinaram a atitude de confronto com os juízes, assumida como prioridade pelo actual executivo, logo no início de funções, quando o primeiro ministro revelou como preocupações primordiais, a par da distribuição de medicamentos nos supermercados, o corte das férias dos juízes.
Nem mais. Quando o país aguardava ansioso o anúncio de medidas de combate à profunda crise económica, social e política, génese do descontentamento que viabilizara a nova maioria absoluta, eis a pública e oportuna denúncia de dois grupos poderosos, beneficiários de privilégios a que urge pôr termo: a associação das farmácias e a corporação dos juízes.
Com desconsertante leviandade, prescindindo de qualquer reflexão séria sobre o tema, no discurso político ficaram definidas as razões da profunda crise da justiça, descobertos os culpados e encontrada a solução: quase tudo se resume, afinal, aos privilégios de uma classe poderosa, que, contrariamente ao comum dos mortais, dedica três longos meses ao laser, para além de pouco produzir nos restantes nove que para o efeito lhe sobram em cada ano.
Perante a profunda gravidade da injúria, procurou-se superficialmente a justificação da hostilidade que a determinou, no processo “Casa Pia” e no folclore mediático que o rodeou, visão simplista e redutora de uma questão que não se resume a vinganças pessoais ou partidárias.
Há que procurar mais fundo a génese da ofensiva que nos trouxe a desmoralização colectiva, traduzida no desconforto do sentimento de injustiça, definindo as causas e questionando o futuro.
Não constitui novidade a culpabilização dos juízes pela crise dramática da justiça, por parte dos sucessivos executivos, mais pelos silêncios e omissões, menos pela sua afirmação frontal, mas nunca se foi tão longe na destruição dos alicerces legitimadores da função de julgar, particularmente no que respeita ao prestígio da magistratura, que dificilmente sobrevive ao odioso da acusação infundada de privilégios injustos e de falta de dedicação profissional, implícita no discurso político.
Com esta transferência de culpas, o poder político realiza dois objectivos: desresponsabiliza-se perante os eleitores, desobrigando-se de qualquer reforma estrutural da justiça, passando a imagem de que bastará a redução do excessivo tempo de laser dos protagonistas do sistema, responsáveis pela crise; e fragiliza o poder judicial, que, devido às novas concepções do estado de direito, passou a invadir áreas cada vez mais importantes da administração pública, chamando o poder executivo a responder, cada vez mais, pela prática de actos que, até há pouco tempo, estavam subtraídos ao conhecimento dos tribunais.
O confronto a que assistimos não será mais de que o reflexo desta relação de equilíbrio instável entre o poder político e o poder judicial, num momento de profundas alterações, em que as regras da transparência exigem cada vez mais a incómoda intervenção deste na esfera daquele, no controle de legalidade, tantas vezes entendido como abusiva limitação do poder legitimado pelo sufrágio (daí o recurso à crítica de falta de legitimidade dos juízes, perante a reeleição “reabilitadora” de autarcas pronunciados pela prática de crimes).
Neste confronto, vulnerabilizam-nos dois factores: o estatuto e o processo.
Quanto ao estatuto, assume particular relevo a incontornável contradição entre a qualidade de titular dum órgão de soberania (que confere autonomia e independência) e a qualidade de funcionário (traduzida num vínculo de subordinação), o que faz com que a valorização de uma dessas componentes apague necessariamente a outra.
Por essa razão, quando o poder político censura o funcionário, descredibiliza o poder judicial através de um expediente que a opinião pública aceita sem reservas (por considerar de elementar justiça que todos os funcionários tenham o mesmo período de férias), sendo o mesmo funcionário, esforçado e zeloso, quem responde à censura, com a promessa de mais zelo e menos esforço, na sequência de uma reunião sindical, onde foram mesmo propostas outras “formas de luta”, como greves por tempo indeterminado.
O conflito entre poderes (político e judicial) fica assim reduzido ao confronto entre administração e funcionário, transferido para um terreno minado favorável à administração, como legítima entidade patronal, apoiada por uma opinião pública avessa a alegados privilégios, ávida do sensacionalismo dos meios de comunicação, surda à tímida e ineficaz reposição da verdade por parte das estruturas representativas dos juízes.
Com esta estratégia, o poder político tira partido da “funcionalização” dos juízes, consolidada por sucessivas gerações de dedicação ilimitada à função, que nos legaram uma herança de integridade profissional, mas que, tal como ocorre hoje connosco, ficaram com o horizonte limitado pelas pilhas de processos, que não nos permitem ver mais longe … para além dos processos.
Há que assumir a responsabilidade que temos na irrelevância que o poder político hoje nos atribui, até porque nunca questionámos o modelo de organização e de gestão da magistratura e as suas inter-relações com o poder político, nunca tivemos uma voz institucional audível nos corredores do poder político e da comunicação social, e permitimos que se apagasse a dignidade do órgão de soberania e prevalecesse a subalternidade do funcionário, que os políticos nem sequer se dão ao trabalho de ouvir antes de tomarem decisões sobre a justiça.
A urgente dignificação da função passa por uma alteração do seu modelo, que, definitivamente, concretize a autonomia e a independência do poder judicial, com a gestão efectiva (financeira e administrativamente autónoma com todos os recursos e meios necessários) da magistratura judicial, por um único órgão (nunca se percebeu a existência de dois conselhos superiores), garantindo-se um equilíbrio na sua composição que neutralize as críticas de perigo de corporativismo que habitualmente se erguem perante esta proposta, de forma a prevalecer o titular da soberania, sobre o funcionário subalterno que o poder político gosta de maltratar.
O outro factor referido – o processo – não é mais do que um emaranhado labiríntico do qual somos todos os dias prisioneiros, laboriosamente tecido pelo legislador, por desconfiar dos juízes.
Quanto mais se clama por uma justiça rápida, mais se garante o alucinante «sobe e desce» de tudo quanto é decisão judicial, mesmo na ínfima bagatela civil ou contra-ordenacional, obrigando a exaustivas fundamentações e exigências formais, abrindo caminho à penosa ascensão do processo, de preferência até ao Tribunal Constitucional, que assim realiza a velha ambição de cúpula do sistema judiciário.
A tendência é para tornar questionáveis e provisórias todas as decisões da primeira instância, mesmo as que se reportam a meros incidentes processuais, independentemente do valor ou da relevância da causa, porque nem o legislador nem a sociedade podem confiar em julgadores todos os dias postos em causa na praça pública.
Os mediáticos incidentes de suspeição do “processo Casa Pia” ilustram bem o limite da indignidade a que chegámos, pondo-se em causa a integridade do juiz por mera estratégia processual, despindo-o de autoridade perante a opinião pública, passando a mensagem de que se pode remover como qualquer outro obstáculo que desagrade aos intervenientes no processo, revelando o descrédito e a desconfiança que o legislador processual lhe atribui, quando abre a porta a todos os excessos, em nome de um único valor sagrado – a defesa do arguido.
Nestes dias de todos os descontentamentos, ultrapassados pela alteração das relações de poder, confrontados com a emergência do poder mediático nos tribunais, com o qual não sabem lidar, hostilizados pela opinião pública incendiada pela demagogia do poder político, meros operários numa engrenagem que não permite a criatividade nem reconhece o mérito, os juízes chegaram ao limite do suportável, e a reconquista do respeito e da dignidade da função não passa pela greve ou “outras formas de luta” do funcionário, mas pela afirmação da soberania do magistrado, que implica uma profunda alteração do estatuto e do processo, com reposição do equilíbrio entre o poder judicial e os restantes poderes.

Carlos Querido
Juiz de Direito

A GREVE E OS JUÍZES


O problema fulcral da justiça, como é constantemente apontado, consiste na denominada morosidade da justiça, a qual se traduz na incapacidade de resposta do sistema em tempo mais curto e útil. Não afecta a generalidade dos tribunais, mas a dimensão aparente que lhe foi atribuída sobrepôs-se à dimensão real. É no entanto um problema gravíssimo, cuja falta de solução põe em causa o princípio constitucional consagrado no n.º 4, do art.º 20, da CRP, onde se lê: «Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável (..)».
Não é um problema novo, nem tão pouco as suas causas são desconhecidas, nem mesmo estão por descobrir as soluções adequadas para o resolver. Verifica-se fundamentalmente nas áreas da justiça cível e criminal, com maior incidência nos tribunais do litoral, em especial nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. No caso da justiça cível o factor preponderante é o elevadíssimo número de processos relacionados com crédito ao consumo, que representam mais de 60% do universo dos processos desta jurisdição (dizendo-se até, entre outras coisas, que se está perante uma colonização do sistema, ao serviço de grandes grupos económicos para cobrança dos seus créditos). E, na justiça criminal, o aumento exponencial da pequena delinquência relacionada com hábitos de toxicodependência e com a deficiente integração de novos grupos sociais, designadamente patente nos crimes de furto e roubo, acrescendo ainda os crimes contra a honra e as ofensas corporais simples, estes muitas vezes resultantes de atritos de vizinhança.
Como outros factores apontam-se a inadequação das leis processuais, em especial na área cível, conduzindo a um processado complexo, labiríntico, demorado, aberto a incidentes processuais que retardam a decisão final; o regime de recursos; a necessidade de reestruturar o mapa judiciário; a necessidade de investir na formação (abrangendo todos os profissionais do foro); a falta de meios materiais e humanos. Neste último caso não só de funcionários judiciais para preencher os quadros, mas também para apoio ao juiz, libertando-o de tarefas secundárias em benefício das funções de julgar e decidir.
Toda esta realidade é conhecida há anos, referida inúmeras vezes em textos de vários autores, entre eles juizes, designadamente desde que se começou a falar na “crise da Justiça”, em meados dos anos 90, e objecto de vários estudos, entre os quais o que consta do relatório do Observatório Permanente da Justiça, sob o título “Bloqueios ao andamento dos processos e propostas de solução” (1999).
A ASJP também o vem fazendo há anos, apresentando por escrito a sucessivos ministros o elenco desses problemas e indicando sugestões para os solucionar, expressando-o em reuniões de trabalho ou pronunciando-se em pareceres sobre projectos de diploma. Ao actual Ministro fê-lo na primeira reunião para a qual a Direcção Nacional foi convocada, no início de Abril.
Do Congresso da Justiça, realizado em Dezembro de 2003, com a participação de todas as profissões forenses, resultaram igualmente contributos válidos, entre os quais se contam o da ASJP, apontando as principais deficiências do sistema de justiça e possíveis caminhos para os solucionar.
A verdade, porém, é que esta realidade tem atravessado transversalmente sucessivos Governos, sem que os problemas de fundo sejam enfrentados e sem que exista um rumo certo. Sucedem-se medidas pontuais ao ritmo a que se sucedem os Governos, discutem-se novamente as mesmas questões e tudo fica praticamente na mesma. Como escrevi num texto dirigido a um dos titulares da pasta, os rumos da justiça têm sido erráticos, vacilantes, marcados por uma produção legislativa constante, bem assim pela atribuição tímida e tardia dos meios necessários.
Será que para ultrapassar esta situação é necessário um “Pacto de regime para a Justiça”, como foi defendido, e por vezes ainda é, por algumas vozes? Por exemplo, será que é preciso um pacto de regime para reformar de vez o Código de Processo Civil? Ou para alterar o mapa judiciário? Ou, ainda, para acudir ao fiasco da reforma da acção executiva?
As medidas necessárias dependem essencialmente de vontade política, do bom senso e de competência política e legislativa. Acontece é que a Justiça nunca foi uma verdadeira prioridade para o poder político.
Mas não é só a falta de medidas a causa do estado da justiça. Por vezes acontece precisamente o contrário, ou seja, a implementação de determinadas soluções vem ainda agravar a situação existente. É o caso, demasiadas vezes verificado, de legislação tecnicamente deficiente, conduzindo às mais variadas interpretações ou a conflitos de competência, ou como exemplo mais recente, a reforma da acção executiva. Se por um lado consagrava boas soluções, designadamente no plano da tramitação processual, por outro também continha outras que à partida faziam antever um mau resultado, entre elas as opções pela apresentação do requerimento executivo via Internet e o respectivo modelo, bem como o recurso à figura do solicitador de execução para realizar a penhora e outros actos, em substituição dos funcionários judiciais. Acresce ainda que a reforma foi iniciada sem que estivessem asseguradas as condições necessárias, designadamente sem a prévia instalação dos tribunais necessários, sem soluções informáticas capazes, sem funcionários judiciais e sem solicitadores de execução em número suficiente e com a necessária preparação técnica.
O resultado é conhecido, em Lisboa e Porto, mais de uma centena de milhar de requerimentos executivos por abrir e, em todo o País, uma redução substancial do número de penhoras realizado. Em suma, uma situação bem pior do que a existente antes da reforma. Antes o credor podia demorar a receber, mas agora não recebe ou raramente vê o seu crédito satisfeito.
E foi assim, neste círculo vicioso, que chegámos aos cerca de dois milhões de processos nos tribunais, tramitando num sistema cada vez mais desajustado, chegando mesmo ao absurdo. O agravamento galopante da situação vem desde há anos sujeitando os Juizes e, também os magistrados do Ministério Público e os funcionários judiciais, a pendências de milhares de processos, com uma carga de tal modo insustentável que impossibilita de todo a celeridade desejável. Consequentemente, nos tribunais onde tal se verifica, o cidadão desespera pela decisão final do seu caso. É o descrédito na Justiça!
O Juiz simboliza e é a face mais visível da Justiça. Daí que, se a Justiça não funciona bem, o raciocínio mais fácil e imediato é atribuir a responsabilidade aos Juizes. Acresce, ainda, que nos dias de hoje a Justiça tornou-se notícia e proporciona audiências, especialmente quanto trata de casos mediáticos, demasiadas vezes com sensacionalismo, sem a competência e sem a isenção e objectividade desejáveis, o que se traduz num resultado nefasto na formação da opinião pública. Para mais, quando a maior parte dos cidadãos não dispõe dos conhecimentos necessários sobre o funcionamento do sistema judicial e da sua função num Estado de Direito, limitando a sua capacidade crítica e reivindicativa..
É por tudo isto que são imputadas aos Juízes culpas que não são deles e nem se cuida de ir mais além na indagação das verdadeiras causas.
Pela parte do poder político, se é indiscutível que ao longo de muitos anos não deu a devida atenção à Justiça, talvez porque também não fosse uma exigência do cidadão eleitor, pelo menos sempre poderá dizer-se que não era usual vermos responsáveis políticos atirar com as culpas dos males do sistema para cima dos juízes.
Pela nossa parte, embora tenhamos constantemente apontado os problemas e proposto soluções, devemos assumir que não o fizemos com a força necessária para provocar a mudança. Mais do que isso, se é inquestionável que a nossa dedicação foi bem intencionada, cumpre-nos também reconhecer que pecou por excesso, já que amparou a marcha do sistema, enquanto se iam agravando as suas debilidades.
Foi neste contexto, entenda-se relativamente à Justiça, que o actual Governo tomou posse. Um novo elenco executivo, mas de um Partido que tem alternado na governação do País, não sendo por isso isento de responsabilidades quanto à situação da Justiça, e muito menos desconhecedor dos problemas, das respectivas causas e dos caminhos para resolver aqueles. A circunstância de estar apoiado numa maioria parlamentar proporcionava as necessárias condições de estabilidade e força política para se iniciarem as reformas da Justiça que o Estado de Direito e os princípios consagrados constitucionalmente exigem. Naturalmente, fazendo nelas participar todos os profissionais do foro, aqueles que pela sua actividade diária detêm o conhecimento prático do sistema, conhecem os problemas e sobre eles reflectiram, tirando proveito da disponibilidade e dos consensos já existentes.
O que vimos, porém, foi o Senhor Primeiro-ministro, na apresentação do Programa do actual Governo na Assembleia da República, em 21.03.2005, anunciar categoricamente a redução das férias judiciais para um mês, erguendo essa medida como prioritária, para depois o reafirmar na apresentação do programa para a justiça. A decisão foi tomada antes de qualquer entidade ser ouvida, designadamente o Conselho Superior da Magistratura, num claro desrespeito pelos princípios democráticos, esquecendo que o poder judicial é um dos três poderes do Estado de Direito, em pleno plano de igualdade com os demais. Não menos grave, a medida foi apresentada e posteriormente sustentada fazendo crer ao cidadão comum que as férias judiciais eram as férias dos juizes, “privilégio injustificado”, que os tribunais estavam parados e invocando-se um estudo que ninguém até hoje viu para afirmar que com esta medida haveria um ganho de produtividade de 10%!
Iniciou-se assim uma postura demagógica, arrogante e autoritária, que marca a forma em como vem sendo conduzida a política para a Justiça, desprestigiando as instituições judiciárias, ignorando as estruturas representativas das várias profissões forenses e persistindo na ausência das medidas adequadas para combater a morosidade processual e os estrangulamentos do sistema.
A forma de actuação do Governo, a ausência de medidas adequadas, a previsão dos problemas que a solução imposta para a redução das férias iria causar, bem assim a descredibilização que foi lançada sobre nós, juizes, levou-nos a mandatar a Direcção Nacional da ASJP, na mais participada das AG em 18 de Junho, para decretar as medidas que entendesse necessárias, incluindo a greve, caso não houvesse uma evolução positiva na condução da política para a justiça, até 30 de Setembro.
Contra a posição de todas as estruturas representativas e dos demais partidos com assento na AR, a “medida prioritária” foi imposta numa solução conformada ao anunciado pelo Primeiro-ministro, a qual, como o futuro próximo revelará, trará sérios inconvenientes para a funcionalidade do sistema.
Em 6 de Julho, numa audiência com o Senhor Ministro da Justiça, pedida conjuntamente pela Ordem dos Advogados, Associação Sindical dos Juizes Portugueses, Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e Sindicato dos Funcionários Judiciais, manifestámos o sério empenho e a disponibilidade de todos os profissionais ali representados para, em colaboração com o Governo, se encontrarem as soluções mais adequadas para a Justiça, referindo-lhe que o êxito de qualquer reforma não será jamais alcançado se avançar à margem do nosso saber, adquirido pela experiência e reflexão, o que pressupunha, como é próprio de um Estado de Direito Democrático, a audição em tempo útil. Igualmente lhe referimos que o êxito de qualquer reforma é indissociável da credibilidade que o sistema de justiça merece junto do cidadão, e que tal depende, desde logo, do reconhecimento da competência, do esforço e do empenho dos profissionais do foro, sendo dever do poder político, nomeadamente deste Governo, afirmá-lo publicamente.
Apesar do nosso apelo, o que vamos assistindo é ao anúncio de medidas avulsas, pontuais e claramente insuficientes para resolver os problemas de fundo, incluindo as que respeitam à acção executiva, como é a opinião consensual dos profissionais do foro, e sempre sem audição das entidades representativas destes.
No que respeita ao nosso estatuto sócio-profissional, seguiu-se a inclusão forçada de uma norma no diploma legal que prevê o congelamento das progressões nas carreiras da função pública, de modo a estender aos juizes o âmbito de aplicação desse regime, para mais recentemente surgir a iniciativa de reestruturar os Serviços Sociais do Ministério da Justiça, sem que seja apresentado um fundamento concreto e sério que o justifique, designadamente de ordem financeira e, para além disso, de maneira particularmente discriminatória para magistrados e funcionários judiciais, já que os exclui desse subsistema, que se mantém para outras profissões, sem um critério que se entenda. Tudo isto é de notar, sem que haja uma verdadeira negociação, mas apenas a realização formal de reuniões para sermos confrontados com “os objectivos do Governo”, logo se afirmando “que este não deixará de os concretizar”. Paralelamente continuamos a ser apresentados à opinião pública como privilegiados, numa autêntica campanha visando o nosso descrédito.
Sejamos claros, se estivessem demonstradas razões que justificassem a necessidade de extinção deste subsistema de saúde, nomeadamente para contenção da despesa pública, nenhum juiz se oporia. Assim como ninguém também se oporia, até porque foram apresentadas propostas nesse sentido, à revisão dos deveres e direitos dos beneficiários, na medida do necessário e enquanto o fosse, para manutenção do SSMJ. Não podem é conformar-se com uma imposição apresentada sem fundamento sério. Basta ver que nem foi determinado o impacto na ADSE, resultante do engrossamento do número de beneficiários em mais de 80.000, e consequentemente no Orçamento do Estado. Essa questão foi por nós colocada, mas ficou sem resposta.
No momento em que escrevo estas linhas, foi divulgado pela comunicação social que o Governo aprovou o diploma revendo o regime jurídico dos SSMJ. Para quem ainda tivesse dúvidas, fica mais uma vez demonstrada a noção de negociação e diálogo deste Governo, tanto mais que em tempo útil a ASJP, ao abrigo da Lei da Negociação Colectiva, formalizou um pedido de negociação suplementar.
Os Juizes são titulares dos órgãos de soberania tribunais e não abdicarão nunca dessa qualidade. Os juizes querem condições efectivas que permitam aos tribunais administrarem a justiça em nome do povo, com independência e apenas sujeitos à lei, em tempo útil e equitativa, e com plena salvaguarda do direito de acesso a todos os cidadãos, independentemente dos seus meios económicos. Precisamente por isso, exigem a reforma da Justiça e reinvindicam o direito de participar nesse processo, como é próprio de um Estado de Direito Democrático, único caminho para evitar a total ruptura do sistema.
Enquanto titulares de órgãos de soberania, igualmente não abdicam de lutar por um estatuto sócio profissional compatível e condigno, até hoje nunca inteiramente reconhecido, proporcionado às especiais exigências e restrições a que estão sujeitos, exactamente em atenção àquela qualidade e enquanto condição da sua independência.
Sempre atendendo a essa mesma qualidade de titulares dos órgãos de soberania tribunais, muito menos podem aceitar de braços cruzados o comportamento institucional deste Governo, onde a arrogância, a demagogia e o populismo substituíram o diálogo, a seriedade e o respeito institucional elementares, conduzindo ao descrédito institucional da Justiça, e em particular dos Juizes.
Foi a gravidade da situação que levou a DN a deliberar a realização de greve e o Conselho Geral a determinar o respectivo período e datas, depois de muita ponderação, cientes da gravidade desta medida.
Sempre manifestámos o nosso propósito sério de diálogo, mas sem vermos qualquer abertura por parte do Governo.
Reafirmámos a nossa disponibilidade, séria e empenhada.
Restou-nos a Greve, direito constitucional cujo exercício nos assiste, e que a evolução das circunstâncias revelou ser o meio adequado e proporcionado a reagirmos e denunciarmos a política autoritária e demagógica deste Governo.
Contamos com a união de todos nós, porque a razão nos assiste e essa é a nossa maior força.

Jerónimo Freitas

Secretário-Geral da ASJP

ALGUMAS NOTAS SOBRE UMA EVENTUAL GREVE DE JUÍZES


Estando em discussão a possibilidade de ser decretada uma greve por parte de magistrados, foi-me solicitado um breve apontamento sobre a admissibilidade e consequências jurídicas de tal greve.

1. Admissibilidade

I. A greve, prevista do art. 57.º da Constituição (CRP), encontra-se regulada nos arts. 591.º a 606.º do Código do Trabalho (CT), regime que se aplica aos trabalhadores com contrato de trabalho, assim como àqueles que tenham uma relação jurídica de emprego público, que lhes confira a qualidade de funcionário ou agente da Administração Pública, por força do disposto no art. 5.º, alínea d), da Lei de Aprovação do Código do Trabalho. Daí, aplicar-se este regime a uma greve de juízes.
A admissibilidade da greve não é hoje contestada nos países que adoptaram sistemas políticos pluralistas e de economia de mercado — perspectivas que costumam encontrar-se associadas —, pois o direito de greve é inegável como instrumento corrector de desequilíbrios.
Não obstante o direito de greve ser incontestável e apesar do disposto no art. 57.º, n.º 2, da CRP, há que ponderar certos limites na sua actuação. Importa, por um lado, disciplinar a greve – que tem de ser exercida de boa fé (art. 582.º do CT) - e, por outro, determinar quais são as greves lícitas. Há, de facto, uma proibição constitucional de limitar o âmbito da greve, mas o Direito não pode admitir situações ilícitas sob o «manto» da greve.
Nem na Constituição (art. 57.º) nem nos arts. 591.º e ss. do CT se encontra qualquer definição deste instituto, mas pode definir-se a greve como a abstenção concertada da prestação de trabalho a efectuar por uma pluralidade de trabalhadores com vista à obtenção de fins comuns.

II. Quanto à abstenção, é sustentável que deva ser entendida como inactividade, como paralisação propriamente dita, não devendo as perturbações na relação de trabalho ser incluídas no conceito de greve. Apesar de discutível, considerar-se-á, assim, ilícita a greve de zelo, por pressupor uma deficiente prestação da actividade em vez da paralisação de trabalho.
Além disso, poderão ser ilícitas as greves em cujo exercício se violem princípios fundamentais de Direito, como seja os princípios da proporcionalidade, da adequação e da boa fé. Por exemplo, as greves que causem prejuízos exorbitantes ao empregador.
A ilicitude da greve pode advir de uma concertação entre diferentes prestadores de trabalho tendo em vista que, com reduzidos esforços, sejam causados elevados prejuízos. Por exemplo, sucessivas paralisações de um dia de diferentes trabalhadores, de modo a inviabilizar o funcionamento total da empresa durante uma semana.

III. No que respeita aos fins, os juízes podem recorrer à greve tendo em conta a prossecução de interesses laborais. Apesar de não serem trabalhadores – no sentido estrito, por não terem contrato de trabalho –, os juízes desenvolvem uma actividade no âmbito de uma relação laboral, justificando-se a defesa de interesses idênticos aos de um trabalhador, como a tabela salarial, o período normal de trabalho ou o direito ao repouso (férias, etc.). Assim, não integram o conceito técnico de greve as chamadas greves de estudantes ou de consumidores ou qualquer paralisação decretada por trabalhadores independentes, por exemplo os agentes comerciais de uma dada empresa, mas será greve em sentido técnico, a greve de juízes.


2. Legitimidade para declarar e fazer a greve

I. Apesar de, por vezes, se aludir à greve como a ultima ratio em dado conflito colectivo, não é necessário que, previamente, se recorra a um processo negocial e, chegando a um impasse, seja declarada a greve. Daí que os juízes, atendendo a um juízo de oportunidade, ainda que o processo negocial não tenha fracassado, podem declarar uma greve. É necessário, contudo, ter em conta as regras da boa fé (art. 582.º do CT).
O juízo de oportunidade, sem descurar uma base jurídica, assenta em factores de ordem política, económica e sócio-laboral. Razão pela qual, além do regime jurídico, a decisão de recurso à greve é usualmente ponderada atendendo, em especial, a critérios sócio-laborais e económicos; contudo, no caso dos juízes, há igualmente a ter em conta o impacto na opinião pública. A isto acresce que os juízes, como titulares de órgãos de soberania, no juízo de oportunidade, deverão pesar as consequências nefastas da decisão de decretarem uma paralisação nos tribunais, onde detêm o poder de decisão, não se encontrando, no que respeita ao exercício das suas funções, sujeitos ao poder de direcção do Estado (empregador).

II. Se os juízes consideram oportuno o recurso à greve, há que fazer a declaração de greve, a qual, em princípio, cabe às associações sindicais (art. 592.º, n.º 1, do CT), pois será difícil que estejam reunidas as circunstâncias para que a greve possa ser declarada por uma assembleias de juízes (art. 592.º, n.º 2, do CT).
Em princípio, quem declara a greve será o sindicato, mas quem faz a greve serão os juízes. Por isso, além da declaração de greve, há a adesão à greve, que é um acto livre e individual de cada juiz. O exercício do direito de greve não pode ser imposto nem pelo sindicato que a declarou nem pelos demais juízes. Qualquer juiz, sem atender ao facto de se encontrar sindicalizado, pode aderir à greve.
Tendo aderido à greve, independentemente da sua filiação, o juiz passa a ser representado pela associação sindical que declarou a greve (art. 593.º, n.º 1, do CT). Esta representação legal, que pode ser delegada (art. 593.º, n.º 2, do CT), respeita unicamente a este conflito colectivo.


3. Aviso prévio

I. A declaração de greve, quando feita a nível sindical, que é a regra, será tomada, em princípio, pela direcção do sindicato. Da declaração de greve deve constar o fim a atingir por essa luta colectiva; no fundo, a razão que levou a ser desencadeada a greve. Além disso, deve também ser determinada qual a data em que ela vai ter lugar, bem como a sua duração.

II. Declarada a greve, terá a mesma de ser comunicada mediante um aviso prévio (art. 595.º do CT). Esse pré-aviso tem de ser feito com uma antecedência mínima e deverá ser dirigido, por um lado, ao empregador – no caso, o Estado (Ministério da Justiça) – e ao Ministério do Trabalho (art. 595.º do CT).
O aviso prévio tem de ser feito com um prazo mínimo de cinco ou de dez dias úteis em relação à data de início da greve. No caso concreto da greve dos juízes, importa determinar se a actividade desenvolvida se destina à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, nesse caso, o prazo deverá ser de dez dias úteis (art. 592.º, n.ºs 2 e 3, do CT). No art. 598.º, n.º 2, do CT enumeram-se, de forma exemplificativa, os sectores da economia que se destinam à satisfação de necessidades sociais impreteríveis da comunidade, não se incluindo as funções judiciais. Contudo, pode entender-se que a realização da justiça feita nos tribunais, através de serviços de atendimento ao público (alínea g)), nalguns casos, tem em vista a satisfação de necessidades essenciais impreteríveis, em particular no caso de réus presos.
O aviso prévio deverá ser efectuado pela entidade que declarou a greve, em regra o sindicato ou os sindicatos que a declararam, por meios idóneos, nomeadamente, por escrito ou através dos meios de comunicação social (art. 595.º, n.º 1, do CT).
Com respeito ao conteúdo, o aviso prévio serve para dar a conhecer ao empregador (no caso, o Estado) que vai ter lugar uma greve em determinada data. Dessa informação deve constar a indicação da greve e do seu âmbito (quais os trabalhadores por ela abrangidos, se é geral, sectorial, profissional, etc.), assim como a data em que a greve vai ter lugar e a sua duração.

III. Nos termos do disposto no n.º 3 do art. 595.º do CT, juntamente com o aviso prévio deve ser feita uma proposta de definição dos serviços necessários para os serviços mínimos (vd. art. 598.º do CT). Impõe-se, assim, à entidade que declara a greve (por via de regra, o sindicato) a apresentação de um plano de prestação de serviços relacionados com o funcionamento de serviços mínimos em benefício da comunidade. Em caso de incumprimento do dever de apresentar uma proposta de serviços mínimos aplica-se o disposto no art. 604.º do CT, relativo à responsabilidade por violação das regras da greve. Se do aviso prévio, enviado com a devida antecedência, faltar a proposta (séria) de definição dos serviços mínimos, a greve é ilícita, com as consequências constantes do art. 604.º do CT.


4. Efeitos da greve

I. Nos termos do art. 597.º, n.º 1, do CT, em relação aos juízes que tenham aderido à greve verifica-se a suspensão da relação jurídica. No mesmo preceito exemplifica-se, determinando que ficam suspensos o direito à retribuição e os deveres de subordinação e de assiduidade. Concretamente, ficam suspensos os efeitos principais da situação jurídica laboral. Haverá outros efeitos que subsistem mesmo durante o período de greve.
Em primeiro lugar, a greve pressupõe a abstenção do trabalho, deixando de ser devida a prestação de uma actividade. E, como o juiz não realiza a actividade, fica também desvinculado dos deveres de assiduidade e de subordinação. Mas subsistem deveres acessórios, como de lealdade ou de sigilo e outros resultantes dos deveres de actuar de boa fé durante o conflito colectivo (art. 582.º do CT).

II. No pólo oposto, o empregador (Estado) não fica vinculado ao dever de pagar a retribuição ao juiz em greve (art. 597.º, n.º 1, do CT), que perde o direito à remuneração na proporção em que a actividade não tenha sido exercida.
Esta perda de retribuição tem sido entendida como afectando tão-só a retribuição daquele mês, sem quaisquer repercussões nas restantes retribuições, designadamente não acarretando redução nos subsídios de Natal e de férias, que se mantêm por inteiro.
Relativamente aos complementos retributivos, a redução terá de ser vista em função da situação concreta, em particular, tendo em conta se esse complemento salarial está ou não relacionado com a prestação da actividade. Por exemplo, sendo a greve por um dia, justifica-se a perda do subsídio de alimentação ou de transporte desse dia, mas não parece razoável o desconto no subsídio de renda de casa.
O empregador (Estado), não obstante a greve, continua adstrito a deveres secundários emergentes da relação jurídica, em especial decorrentes da boa fé (art. 582.º do CT).


5. Serviços mínimos

I. Na medida em que os tribunais satisfazem de necessidades sociais impreteríveis, deve ser assegurada a prestação de serviços mínimos (art. 598.º, n.º 1, do CT).
No art. 598.º, n.º 2, do CT, exemplificam-se alguns dos sectores onde se considera que existem empresas prestando serviços para a satisfação de necessidades sociais impreteríveis, mas a ausência de referência expressa à actividade judicial não impede a inclusão deste sector entre aqueles que prestam serviços para a satisfação de necessidades sociais impreteríveis. Não sendo a enumeração taxativa, leva a que se possa admitir a existência de outros sectores, não indicados no elenco do art. 598.º, n.º 2, do CT, relativamente aos quais seja justificável o estabelecimento de serviços mínimos.

II. Com os serviços mínimos não se pretende assegurar a regularidade da actividade, mas tão-só as necessidades essenciais, sendo normalmente polémica a determinação de quais sejam as necessidades essenciais que têm de ser garantidas ao público.
Por vezes, torna-se extremamente difícil determinar quais os serviços mínimos que devem ser assegurados e, em certos casos, a prestação dos serviços mínimos implica que se assegure a actividade na sua totalidade.
A concretização dos serviços mínimos no caso de greve de juízes depende de uma ponderação atenta das necessidades sociais. A concretização será feita em dois planos; primeiro, na determinação de indispensabilidade do serviço e, segundo, na fixação do montante de serviços mínimos.

III. Nos termos do disposto no art. 599.º do CT, a definição dos serviços mínimos depende de acordo; acordo esse que, na falta de previsão em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, poderá ter por base a proposta constante do aviso prévio, a que alude o n.º 3 do art. 595.º do CT.
Não tendo sido possível chegar a acordo, e tratando-se de greve em serviços da administração directa do Estado – como é o caso dos tribunais – a definição dos serviços mínimos caberá a um colégio arbitral, nos termos constantes dos n.os 4 e 5 do art. 599.º do CT. Porém, como a lista de árbitros não está fixada, este mecanismo ainda não pode funcionar.
Definidos os serviços mínimos, por acordo ou por decisão arbitral, devem os representantes dos trabalhadores designar os juízes que ficam adstritos à prestação dos serviços mínimos com, pelo menos, quarenta e oito horas de antecedência relativamente ao início da greve (n.º 6, 1.ª parte). Se os representantes dos trabalhadores (por via de regra o sindicato que declarou a greve) não designarem, nas quarenta e oito horas anteriores ao início da greve, os juízes que ficam adstritos à prestação de serviços mínimos, cabe ao empregador (Estado) proceder a essa designação.

IV. Como resulta do art. 600.º do CT, o juiz que adere à greve e cumpre serviços mínimos, fica «(…) na estrita medida necessária à prestação desses serviços, sob a autoridade e direcção do empregador, tendo direito, nomeadamente, à retribuição».
PEDRO ROMANO MARTINEZ
Professor Doutor da Faculdade de Direito de Lisboa

Justiça castrense


NOTAS SOBRE OS DOIS NOVOS TRIBUNAIS MILITARES
· Inconstitucionalidade do foro distributivo?
· Inconstitucionalidade do estatuto de juízes militares?


· Arquivo e certidões
Em resultado da nova redacção do Artº 213º CRP, introduzida pelo Artº 137º da Lei Constitucional nº 1/97 de 20/9/97 e após a transitoriedade do Artº 197º da mesma Lei (4ª revisão), entrou em vigor no passado dia 14 de Setembro de 2004 o novo Código de Justiça Militar (CJM), aprovado pela Lei nº 100/2003 de 15/11/2003, seus Artº 1º e 11º), com assim ficando extintos todos os Tribunais Militares Territoriais (TMTs) dispersos pelo País: Lisboa (1º, 2º, 3º e o da Marinha), Porto (1º e 2º), Coimbra, Tomar e Elvas. E ainda o Supremo Tribunal Militar (STM), este com séculos de História, porquanto as suas raízes remontam ao Decreto de 11/12/1640. Os processos pendentes nos TMTs foram remetidos às Varas Criminais, (Artº 3º da Lei 105/2003 de 10/12). Os processos findos foram entregues ao Arquivo Geral do Exército (Arquivo Histórico).
Processos findos, alguns nem tanto assim, visto que para além da sua consulta pelos interessados (Artº 89º e 90º CPP), deles continuará a ser necessário extrair certidões para os mais diversos fins em outros processos pendentes (cúmulo jurídico (Artº 77º e 78º CP), reincidência (Artº 75º CP), suspensão da execução da pena (Artº 56º CP), liberdade condicional (Artº 64º CP), liquidação da pena (Artº 81º CP)). Daí que um serviço transitório competente, talvez uma secção de processos, devesse ter sido mantido durante algum tempo para assegurar esse expediente. O Arquivo Histórico não estará certamente vocacionado para a delicada tarefa de compulsar os autos - acórdãos, despachos intermédios, mandados, etc. - com vista à recolha dos elementos necessários à contagem e liquidação da pena. Uma tal secção de processos poderia ainda cooperar na recepção, conferência de listagens, catalogação e organização do arquivo. Na eventualidade de daqui a dias não se encontrar um processo o seu extravio vai imputar-se ao Arquivo Histórico que o recebeu ou ao tribunal extinto que já não o enviou?


· Excepção territorial
A jurisdição militar foi extinta com o declarado propósito de integração da justiça militar no foro comum. Assim, seria de aguardar que tal se processasse pelos tribunais comuns de todo o país (continente e regiões autónomas), segundo as regras próprias de competência territorial da jurisdição comum. Uma vez que de há muito que no direito processual penal está consagrado o princípio do locus delicti segundo o qual: «É competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação» (Artº 19º do CPP). E a razão de ser é clara, «A preferência da lei pelo tribunal do locus delicti radica-se em que nesse local são mais facilmente recolhidas as provas e menos perturbação causa aí a instrução e o julgamento a todos aqueles que são obrigados a deslocar-se ao tribunal». Sucede porém, que o novo CJM excepciona este regime no seu Artº 110º nº 1 alíneas a) e b), ao atribuir a competência territorial para conhecer dos crimes estritamente militares apenas às 1ª e 2ª Varas Criminais da Comarca de Lisboa e à 1ª Vara Criminal da Comarca do Porto, independentemente do lugar onde o crime tenha sido perpetrado. E isto sem qualquer explicação prévia, visto que tanto o projecto do PS como o do PSD se limitavam a referir simplesmente que “foi necessário especificar quais os tribunais competentes para a instrução e julgamento dos crimes estritamente militares”.
Como deixámos dito no Diário Insular de Angra do Heroísmo de 16/5/2003, os utentes das Regiões Autónomas são os mais penalizados. No Continente o juiz de Círculo calcorreia todas as comarcas da sua circunscrição. Nos Açores ainda não há muitos anos que o Juiz de Círculo percorria todas as Ilhas. E ainda hoje o Juiz de Círculo de Angra do Heroísmo (Terceira) se desloca às comarcas sedeadas nas Ilhas Graciosa, São Jorge, Pico, Faial e Flores. Tendo presente os princípios da cooperação e da concertação de datas (Artº 266º CPC e Artº 312º/4 CPP), seria mais fácil e mais económico deslocar um juiz militar do continente a Angra do Heroísmo, Praia da Vitória ou Ponta Delgada do que destas cidades deslocar a Lisboa pelo menos um arguido, um ofendido, duas ou três testemunhas, um Advogado. Havendo ainda que ter em conta os casos de adiamento e de exame no local. E ainda que agora há custas a pagar enquanto antes a justiça militar era gratuita (Artº 327º CJM). Ao excepcionar a regra geral do foro locus delicti, dentro da mesma espécie de tribunais, sem qualquer explicação que possa ser entendida e conferida pelos cidadãos e resultando daí que uns cidadãos ficam territorialmente beneficiados ou prejudicados face a outros, tal pode colidir com o princípio constitucional segundo o qual todos os cidadãos são iguais perante a lei (Artº 13º CRP).


· Longa manus
Repare-se que o novo CJM não se limita a atribuir a competência apenas às Varas Criminais, mas vai ao ponto de indicar qual a Vara Criminal competente. Na prática isto corresponde à prévia distribuição dos processos em Lisboa às 1ª e 2ª Varas, dentre as dez existentes e no Porto à 1ª Vara, dentre as quatro existentes. Sendo que dentro do mesmo Tribunal a distribuição dos processos faz-se por sorteio sob a presidência do juiz (Artº 214º CPC). Ora, ao afastar o sorteio e o juiz, este foro distributivo, qual longa manus do poder político, configura alguma interferência na função judicial e por via dela um toque no principio constitucional da separação de poderes (Artº 111º CRP).

· Sentido exclusivo
Mas o caso mais sério está em que, restringindo o CJM a competência territorial apenas às Varas e, dentro destas, afunilando ainda nas 1 e 2 de Lisboa e 1 do Porto o resultado final é a existência de dois tribunais criminais de competência exclusiva para o julgamento dos crimes militares, o que não é autorizado antes proibido pela Constituição. Na verdade, preceitua o Artº 209º nº 4 da CRP que: “Sem prejuízo do disposto quanto aos tribunais militares, é proibida a existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes”. Sendo que o disposto quanto aos tribunais militares é este: “Durante a vigência do estado de guerra serão constituídos tribunais militares com competência para o julgamento de crimes de natureza estritamente militar” (Artº 213º). Conjugando estas duas normas o que a Constituição diz é isto: sem prejuízo do disposto quanto aos tribunais militares em tempo de guerra, é proibida em tempo de paz a existência de tribunais com competência exclusiva para o julgamento da categoria de crimes de natureza estritamente militar. É certo que as referidas Varas ainda julgam crimes comuns. E é claro que elas sempre seriam competentes para o julgamento dos crimes militares cometidos na sua área. Mas nada disso afasta o cerne da questão que está no sentido exclusivo que Código assume de que só estas Varas e mais nenhumas são as competentes para o julgamento destes crimes militares. No final de contas o que está a suceder é a discreta instalação de dois tribunais militares dentro das varas criminais. Vendo os antigos tribunais militares extintos e não contemplando a Constituição a criação de um Tribunal Criminal de Competência Especializada Militar, porventura a solução adequada, o novo CJM, contornando, procura encontrar uma solução que na prática vá dar ao mesmo. Mas as fragilidades da construção afiguram-se manifestas.


· Tribunais de Instância
Outro caso delicado constitui o estatuto dos juízes militares. A norma mestra está contida no novo Artº 211º/3 CRP que diz assim: «Da composição dos tribunais de qualquer instância que julguem crimes de natureza estritamente militar fazem parte um ou mais juízes militares, nos termos da lei». Então umas breves notas sobre quais são os tribunais de instância, como os juízes militares deles fazem parte e sobre o alcance da remissão nos termos da lei. Quanto ao primeiro ponto, as normas constitucionais vizinhas contidas nos Artº 209º/1/a e Artº 210º/1/3/4/5 fazem a enumeração taxativa definindo que são tribunais de instância os tribunais de comarca, os tribunais da Relação e o STJ quando funcionar como tribunal de instância. Na terminologia constitucional o STJ não é um tribunal de instância, embora possa funcionar como tal nos casos que a lei determinar (v.g nas situações do Artº 109º CJM em que também conhece da matéria de facto). Daí que os juízes militares dos ramos referidos no Artº 29º-A da LOFTJ só intervenham nos casos em que o STJ funcione como tribunal de instância. Já não nos demais casos em que funcione como tribunal de recurso, restrito a matéria de direito, como é de regra (Artº 26º LOFT).

· Fazer parte
Questão perseguida é estoutra de saber em que termos é que os juízes militares fazem parte do tribunal. O Dr. Jorge Lacão, na sua Constituição Anotada, Texto Editora, 2ª Ed. 1997, p. 128, em anotação ao referido Artº 211º dizia que “A solução, porventura inspirada nos juízes sociais (Artº 207º nº 2), mas neste caso com natureza necessária e não meramente facultativa, assegura um adequado equilíbrio entre a especificidade da instituição militar e o principio da independência dos tribunais”. Sendo que o citado Artº 207º/2 preceitua que “A lei poderá estabelecer a intervenção de juízes sociais no julgamento de questões de trabalho……ou outras em que se justifique uma especial ponderação dos valores sociais ofendidos”. Nesta perspectiva os juízes militares acresciam aos juízes togados, funcionando o tribunal com uns e outros à semelhança de com os juízes sociais (Artº 88º LOFTJ). E o tribunal singular porventura à semelhança do Artº 472º/1 CJM antigo, agora em sentido inverso. Não foi este porém, o caminho seguido pelo legislador parlamentar que, recuperando da figura o conteúdo funcional do juiz militar antigo, determinou que o juiz militar actual continua a integrar o próprio tribunal colectivo, onde vai substituir um juiz togado. Sai um juiz togado e entra um juiz militar (Artº 111º e 116º CJM).

· Dois corpos, dois estatutos
Só que a esta solução depara-se algum desconforto constitucional, qual seja o contido no Artº 215º/1 CRP segundo o qual: «Os juízes dos tribunais judiciais formam um corpo único e regem-se por um só estatuto».
Um corpo único, um só estatuto… Ora, sendo certo que as varas criminais são tribunais judiciais então ao que agora se assiste é à presença simultânea, em exercício de funções, de dois corpos de juízes, regidos por dois estatutos diferentes. Um corpo de juízes togados, licenciados em direito, com formação judiciária e outro corpo de juízes fardados, licenciados em ciências militares, com formação castrense. E dois Estatutos, um regido pela Lei 21/85 de 30/7, (juízes togados) e outro regido pela Lei 101/2003 de 15/11, (juízes militares). Assim como nos tribunais superiores se assiste à presença de juízes, que não pela via constitucional de recrutamento e de acesso prevista, (nºs 3 e 4 do Artº 215º CRP). Sendo certo que o capítulo constitucional dos juízes dos tribunais judiciais (Artº 215º a 218º CRP) não foi alterado no sentido de acolher o procedimento de substituição proposto pelo novo CJM. E entretanto: nos casos de enxerto cível na acção penal, por via do princípio da adesão obrigatória contido nos Artº 71º e 72º CPP, o corpo militar tem competência cível? (No CJM antigo não havia pedido cível (Artº 311º)).

· Nos termos da Lei
Dir-se-ia que tudo está nos termos da lei. Só que esta remissão constitucional do Artº 211º nº 3 in fine não o é em termos absolutos. O legislador parlamentar terá de conter-se dentro dos limites que, em bloco, lhe estão definidos pelo legislador constitucional. A Assembleia da República no exercício soberano do seu poder legislativo terá de respeitar as normas e princípios constitucionais que ela própria antes aprovara, quando assumira poderes constituintes ou de revisão constitucional. “A validade das leis… depende da sua conformidade com a constituição” - consagra o Artº 3º nº 3 da Lei Fundamental.
Ao prescrever a norma constante do Artº 211º/3 CRP o legislador constitucional teria o seu pensamento conectado com a figura dos juízes sociais e outras contidas no Artº 207º CRP e daí o não ter “mexido” nas normas estatutárias constantes do Artº 215º CRP, porquanto compatíveis entre si (Artº 287º/1 CRP). Por sua vez o legislador parlamentar, anos depois, ao prescrever as normas de organização judiciária e processuais constantes do novo CJM, teria o seu pensamento conectado com as correspondentes normas do velho CJM e por elas influenciado. O resultado é a desconformidade jurídico-constitucional com que se depara. E agora alguém com auctoritas harmoniza isto num ou noutro sentido ou o Tribunal Constitucional terá, porventura, alguma Jurisprudência a proferir (Artº 280º CRP).


Francisco Henriques das Neves
Ex-Juiz de Direito da Comarca de Angra do Heroísmo
Ex-Juiz Auditor do 3º Tribunal Militar de Lisboa

Sunday, October 23

meteorologia

RETÁBULO DA ALMA CENSURADA


"…Mas se acaso, tirana, estrela ímpia,
é culpa o não ter culpa, eu culpa tenho.
Mas se a culpa que tenho não é culpa,
para que me usurpais com impiedade
o crédito, a esposa e a liberdade?"

António José da Silva, O Judeu


Ele chegou à hora marcada. Pontual, como sempre. O ritual, o do costume: abri-lhe a porta do escritório, cumprimentei-o, dirigimo-nos ao gabinete, trocámos as amenidades da praxe. Algo mudara, no entanto. Via-o mais curvado, com o olhar baço dos desesperançados. O fato cinzento evidenciava o uso extremo, e a camisa achava-se puída no colarinho e nos punhos. O relógio automático fora substituído no pulso por um modelo utilitário e anónimo, de plástico. Conheço-o há longos anos, desde os tempos de estágio. Fora um dos primeiros clientes do escritório, e nessa qualidade se mantivera ao longo dos anos. A crise impedira a actualização da avença de há um lustre para cá. Há cerca de um ano, comunicara-me, pesaroso e embaraçado, que não podia manter a avença, não porque estivesse insatisfeito com os serviços prestados, mas porque necessitava de cortar custos. Já o pressentira eu, a meio de acções declarativas à espera de Godot, de execuções frustradas por falta de bens, de impugnações paulianas que se arriscavam a tornar eternas. Continuámos, no entanto, a trabalhar. Menos trabalho, é certo, e menos conforto: os honorários tornaram-se mais exíguos, nalguns casos até simbólicos, as provisões mal davam, as mais das vezes, para as despesas. Paciência, pensei eu, é a função social da Advocacia, e melhores dias virão.
O que hoje o trouxera aqui fora a interposição de uma acção contra uma empresa sedeada em Itália, que fizera terminar o contrato de agência e se recusava a pagar a indemnização de clientela. A pretensão era justiciável e apresentava elevadas probabilidades de êxito, disse-lhe eu, após análise da documentação que me trouxera. Necessário era, para já, proceder à tradução para português dos documentos vertidos em língua estrangeira, a fim de instruir o processo. Vi-o mais confortado. Redigi e entreguei-lhe, como habitualmente, a comunicação de previsão para despesas, aí incluindo os previsíveis custos de expediente, traduções e taxa de justiça inicial. Mil e trezentos euros, rezava o total, dos quais a parte de leão respeitava à taxa de justiça. Ele arqueou as sobrancelhas, com indisfarçável espanto. "Tanto dinheiro, Senhor Doutor!", exclamou. Pois é, a justiça é um bem caro e caprichoso. Torceu e retorceu as mãos, e discorreu, mais para os seus botões do que para mim, sobre a situação aflitiva em que a empresa se encontrava, descapitalizada pela crise, é claro, mas sobretudo pelos créditos em contencioso, aqueles que se iam acumulando, em pó e pastas, no meu arquivo e nas secretarias dos tribunais; pelo IVA que se viu obrigado a entregar ao Estado, muito embora nunca o tivesse recebido dos clientes; pelo IVA que o Estado teria de devolver, não o fazendo nunca atempadamente; pelos consertos dos dois camiões abalroados por uma coluna militar, que esse mesmo Estado, condenado em primeira instância e tendo perdido todos os recursos, insistia em não pagar. "E se recorrêssemos ao apoio judiciário, senhor doutor? Bem vê que a situação da empresa não permite grandes despesas, e assim ficavam também assegurados os seus honorários.", lançou ele, na esperança de que essa fórmula mágica resolvesse o problema. Retorqui-lhe que tal não era possível. A bem da Nação, o legislador interviera, impossibilitando a escolha pelo interessado do Advogado da sua confiança para propositura ou contestação de acção cível, acaso necessitasse que a "res publica" suportasse os respectivos honorários, ainda que tabelados por baixo. Por igual arte, a dispensa do pagamento de taxa de justiça fora igualmente suprimida, excepto para casos extremos de indigência, daqueles que obrigam a dormir nas arcadas dos prédios e a vasculhar os caixotes do lixo. Agora, diz a lei, que é quem mais ordena, a Ordem impõe ao interessado um causídico (e ao causídico o interessado…) segundo critérios não legislados mas definidos por regulamento interno, de resto extremamente elucidativo; quem ainda não esteja reduzido à condição mendicante poderá sempre pagar os encargos do processo em prestações suaves, num regime xerografado dos tempos áureos do crédito ao consumo. Rezam as apologias desta solução inédita que assim se evitam as indignidades dos senhores que chegavam em carros de alta cilindrada ao Tribunal, para litigarem ao abrigo do apoio judiciário. Com a cumplicidade dos respectivos causídicos, supõe-se. Sucede que os causídicos, a esses, diz-lhes respeito representarem os seus clientes e, muito embora já tenham sido legalmente investidos nas improváveis qualidades de funcionários não remunerados dos tribunais e dos correios, não consta que tenham sido igualmente nomeados fiscais para a promoção da virtude e para a proscrição do vício, ou que lhes tenham sido facultados os meios para tal. Acresce que, na penúltima (como na actual) formatação legal da "protecção jurídica", a instrução do processo para o reconhecimento de tal direito cabia à Segurança Social, que presuntivamente deveria aquilatar da real situação patrimonial dos requerentes. Num Estado normal, não se resolve a incompetência do Estado, negando-se aos mais desprotegidos a liberdade de escolha para o exercício de direitos, nem se lhes instila o receio da vinculação perpétua a dívidas para os dissuadir do recurso à justiça. Mas este Estado, já se vê, anda perigosamente à deriva entre a República de San Marcos de Woody Allen e uma Camorra com tiques mediáticos, em que à promoção da justiça interessam sobretudo a supressão das férias judiciais, com a qual se pune essa casta de presuntivos madraços (funcionários judiciais, solicitados, magistrados e advogados); a aproximação à autotutela por via da desjudicialização; a eliminação das vias de recurso; e as necessidades "High Tech", como os futuristas formulários "online" para propositura de acções, uns jumentos cibernéticos e temperamentais, frequentemente emperrados e imunes às sevícias físicas.
Ele partiu, algo desalentado. Disse-me que iria tentar arranjar o dinheiro para a taxa de justiça. As traduções, essas, seriam feitas por duas primas, professoras de línguas. Os meus honorários, seriam pagos um dia, quando as coisas andassem melhor, no limite, quando a Ré lhe pagasse o peticionado.
O dia está a chegar ao fim. Espreito pela janela, e vejo a longa fila de trânsito que me engolirá e me arruinará a temperança e a paciência, caso decida sair já. Decido aguardar. Na estante, espreita-me um pequeno volume dedicado ao expressionismo. Abro-o e folheio-o, enquanto aguardo que a extinção das buzinadelas anuncie a hora propícia para a partida. Detenho-me na página que reproduz "O grito", de Edvard Munch. Tiro uma fotocópia, e junto-a à documentação que ele me deixou. Parece-me apropriado.

João C. Coelho de Lima
Advogado