Monday, October 24

A GREVE E OS JUÍZES


O problema fulcral da justiça, como é constantemente apontado, consiste na denominada morosidade da justiça, a qual se traduz na incapacidade de resposta do sistema em tempo mais curto e útil. Não afecta a generalidade dos tribunais, mas a dimensão aparente que lhe foi atribuída sobrepôs-se à dimensão real. É no entanto um problema gravíssimo, cuja falta de solução põe em causa o princípio constitucional consagrado no n.º 4, do art.º 20, da CRP, onde se lê: «Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável (..)».
Não é um problema novo, nem tão pouco as suas causas são desconhecidas, nem mesmo estão por descobrir as soluções adequadas para o resolver. Verifica-se fundamentalmente nas áreas da justiça cível e criminal, com maior incidência nos tribunais do litoral, em especial nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. No caso da justiça cível o factor preponderante é o elevadíssimo número de processos relacionados com crédito ao consumo, que representam mais de 60% do universo dos processos desta jurisdição (dizendo-se até, entre outras coisas, que se está perante uma colonização do sistema, ao serviço de grandes grupos económicos para cobrança dos seus créditos). E, na justiça criminal, o aumento exponencial da pequena delinquência relacionada com hábitos de toxicodependência e com a deficiente integração de novos grupos sociais, designadamente patente nos crimes de furto e roubo, acrescendo ainda os crimes contra a honra e as ofensas corporais simples, estes muitas vezes resultantes de atritos de vizinhança.
Como outros factores apontam-se a inadequação das leis processuais, em especial na área cível, conduzindo a um processado complexo, labiríntico, demorado, aberto a incidentes processuais que retardam a decisão final; o regime de recursos; a necessidade de reestruturar o mapa judiciário; a necessidade de investir na formação (abrangendo todos os profissionais do foro); a falta de meios materiais e humanos. Neste último caso não só de funcionários judiciais para preencher os quadros, mas também para apoio ao juiz, libertando-o de tarefas secundárias em benefício das funções de julgar e decidir.
Toda esta realidade é conhecida há anos, referida inúmeras vezes em textos de vários autores, entre eles juizes, designadamente desde que se começou a falar na “crise da Justiça”, em meados dos anos 90, e objecto de vários estudos, entre os quais o que consta do relatório do Observatório Permanente da Justiça, sob o título “Bloqueios ao andamento dos processos e propostas de solução” (1999).
A ASJP também o vem fazendo há anos, apresentando por escrito a sucessivos ministros o elenco desses problemas e indicando sugestões para os solucionar, expressando-o em reuniões de trabalho ou pronunciando-se em pareceres sobre projectos de diploma. Ao actual Ministro fê-lo na primeira reunião para a qual a Direcção Nacional foi convocada, no início de Abril.
Do Congresso da Justiça, realizado em Dezembro de 2003, com a participação de todas as profissões forenses, resultaram igualmente contributos válidos, entre os quais se contam o da ASJP, apontando as principais deficiências do sistema de justiça e possíveis caminhos para os solucionar.
A verdade, porém, é que esta realidade tem atravessado transversalmente sucessivos Governos, sem que os problemas de fundo sejam enfrentados e sem que exista um rumo certo. Sucedem-se medidas pontuais ao ritmo a que se sucedem os Governos, discutem-se novamente as mesmas questões e tudo fica praticamente na mesma. Como escrevi num texto dirigido a um dos titulares da pasta, os rumos da justiça têm sido erráticos, vacilantes, marcados por uma produção legislativa constante, bem assim pela atribuição tímida e tardia dos meios necessários.
Será que para ultrapassar esta situação é necessário um “Pacto de regime para a Justiça”, como foi defendido, e por vezes ainda é, por algumas vozes? Por exemplo, será que é preciso um pacto de regime para reformar de vez o Código de Processo Civil? Ou para alterar o mapa judiciário? Ou, ainda, para acudir ao fiasco da reforma da acção executiva?
As medidas necessárias dependem essencialmente de vontade política, do bom senso e de competência política e legislativa. Acontece é que a Justiça nunca foi uma verdadeira prioridade para o poder político.
Mas não é só a falta de medidas a causa do estado da justiça. Por vezes acontece precisamente o contrário, ou seja, a implementação de determinadas soluções vem ainda agravar a situação existente. É o caso, demasiadas vezes verificado, de legislação tecnicamente deficiente, conduzindo às mais variadas interpretações ou a conflitos de competência, ou como exemplo mais recente, a reforma da acção executiva. Se por um lado consagrava boas soluções, designadamente no plano da tramitação processual, por outro também continha outras que à partida faziam antever um mau resultado, entre elas as opções pela apresentação do requerimento executivo via Internet e o respectivo modelo, bem como o recurso à figura do solicitador de execução para realizar a penhora e outros actos, em substituição dos funcionários judiciais. Acresce ainda que a reforma foi iniciada sem que estivessem asseguradas as condições necessárias, designadamente sem a prévia instalação dos tribunais necessários, sem soluções informáticas capazes, sem funcionários judiciais e sem solicitadores de execução em número suficiente e com a necessária preparação técnica.
O resultado é conhecido, em Lisboa e Porto, mais de uma centena de milhar de requerimentos executivos por abrir e, em todo o País, uma redução substancial do número de penhoras realizado. Em suma, uma situação bem pior do que a existente antes da reforma. Antes o credor podia demorar a receber, mas agora não recebe ou raramente vê o seu crédito satisfeito.
E foi assim, neste círculo vicioso, que chegámos aos cerca de dois milhões de processos nos tribunais, tramitando num sistema cada vez mais desajustado, chegando mesmo ao absurdo. O agravamento galopante da situação vem desde há anos sujeitando os Juizes e, também os magistrados do Ministério Público e os funcionários judiciais, a pendências de milhares de processos, com uma carga de tal modo insustentável que impossibilita de todo a celeridade desejável. Consequentemente, nos tribunais onde tal se verifica, o cidadão desespera pela decisão final do seu caso. É o descrédito na Justiça!
O Juiz simboliza e é a face mais visível da Justiça. Daí que, se a Justiça não funciona bem, o raciocínio mais fácil e imediato é atribuir a responsabilidade aos Juizes. Acresce, ainda, que nos dias de hoje a Justiça tornou-se notícia e proporciona audiências, especialmente quanto trata de casos mediáticos, demasiadas vezes com sensacionalismo, sem a competência e sem a isenção e objectividade desejáveis, o que se traduz num resultado nefasto na formação da opinião pública. Para mais, quando a maior parte dos cidadãos não dispõe dos conhecimentos necessários sobre o funcionamento do sistema judicial e da sua função num Estado de Direito, limitando a sua capacidade crítica e reivindicativa..
É por tudo isto que são imputadas aos Juízes culpas que não são deles e nem se cuida de ir mais além na indagação das verdadeiras causas.
Pela parte do poder político, se é indiscutível que ao longo de muitos anos não deu a devida atenção à Justiça, talvez porque também não fosse uma exigência do cidadão eleitor, pelo menos sempre poderá dizer-se que não era usual vermos responsáveis políticos atirar com as culpas dos males do sistema para cima dos juízes.
Pela nossa parte, embora tenhamos constantemente apontado os problemas e proposto soluções, devemos assumir que não o fizemos com a força necessária para provocar a mudança. Mais do que isso, se é inquestionável que a nossa dedicação foi bem intencionada, cumpre-nos também reconhecer que pecou por excesso, já que amparou a marcha do sistema, enquanto se iam agravando as suas debilidades.
Foi neste contexto, entenda-se relativamente à Justiça, que o actual Governo tomou posse. Um novo elenco executivo, mas de um Partido que tem alternado na governação do País, não sendo por isso isento de responsabilidades quanto à situação da Justiça, e muito menos desconhecedor dos problemas, das respectivas causas e dos caminhos para resolver aqueles. A circunstância de estar apoiado numa maioria parlamentar proporcionava as necessárias condições de estabilidade e força política para se iniciarem as reformas da Justiça que o Estado de Direito e os princípios consagrados constitucionalmente exigem. Naturalmente, fazendo nelas participar todos os profissionais do foro, aqueles que pela sua actividade diária detêm o conhecimento prático do sistema, conhecem os problemas e sobre eles reflectiram, tirando proveito da disponibilidade e dos consensos já existentes.
O que vimos, porém, foi o Senhor Primeiro-ministro, na apresentação do Programa do actual Governo na Assembleia da República, em 21.03.2005, anunciar categoricamente a redução das férias judiciais para um mês, erguendo essa medida como prioritária, para depois o reafirmar na apresentação do programa para a justiça. A decisão foi tomada antes de qualquer entidade ser ouvida, designadamente o Conselho Superior da Magistratura, num claro desrespeito pelos princípios democráticos, esquecendo que o poder judicial é um dos três poderes do Estado de Direito, em pleno plano de igualdade com os demais. Não menos grave, a medida foi apresentada e posteriormente sustentada fazendo crer ao cidadão comum que as férias judiciais eram as férias dos juizes, “privilégio injustificado”, que os tribunais estavam parados e invocando-se um estudo que ninguém até hoje viu para afirmar que com esta medida haveria um ganho de produtividade de 10%!
Iniciou-se assim uma postura demagógica, arrogante e autoritária, que marca a forma em como vem sendo conduzida a política para a Justiça, desprestigiando as instituições judiciárias, ignorando as estruturas representativas das várias profissões forenses e persistindo na ausência das medidas adequadas para combater a morosidade processual e os estrangulamentos do sistema.
A forma de actuação do Governo, a ausência de medidas adequadas, a previsão dos problemas que a solução imposta para a redução das férias iria causar, bem assim a descredibilização que foi lançada sobre nós, juizes, levou-nos a mandatar a Direcção Nacional da ASJP, na mais participada das AG em 18 de Junho, para decretar as medidas que entendesse necessárias, incluindo a greve, caso não houvesse uma evolução positiva na condução da política para a justiça, até 30 de Setembro.
Contra a posição de todas as estruturas representativas e dos demais partidos com assento na AR, a “medida prioritária” foi imposta numa solução conformada ao anunciado pelo Primeiro-ministro, a qual, como o futuro próximo revelará, trará sérios inconvenientes para a funcionalidade do sistema.
Em 6 de Julho, numa audiência com o Senhor Ministro da Justiça, pedida conjuntamente pela Ordem dos Advogados, Associação Sindical dos Juizes Portugueses, Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e Sindicato dos Funcionários Judiciais, manifestámos o sério empenho e a disponibilidade de todos os profissionais ali representados para, em colaboração com o Governo, se encontrarem as soluções mais adequadas para a Justiça, referindo-lhe que o êxito de qualquer reforma não será jamais alcançado se avançar à margem do nosso saber, adquirido pela experiência e reflexão, o que pressupunha, como é próprio de um Estado de Direito Democrático, a audição em tempo útil. Igualmente lhe referimos que o êxito de qualquer reforma é indissociável da credibilidade que o sistema de justiça merece junto do cidadão, e que tal depende, desde logo, do reconhecimento da competência, do esforço e do empenho dos profissionais do foro, sendo dever do poder político, nomeadamente deste Governo, afirmá-lo publicamente.
Apesar do nosso apelo, o que vamos assistindo é ao anúncio de medidas avulsas, pontuais e claramente insuficientes para resolver os problemas de fundo, incluindo as que respeitam à acção executiva, como é a opinião consensual dos profissionais do foro, e sempre sem audição das entidades representativas destes.
No que respeita ao nosso estatuto sócio-profissional, seguiu-se a inclusão forçada de uma norma no diploma legal que prevê o congelamento das progressões nas carreiras da função pública, de modo a estender aos juizes o âmbito de aplicação desse regime, para mais recentemente surgir a iniciativa de reestruturar os Serviços Sociais do Ministério da Justiça, sem que seja apresentado um fundamento concreto e sério que o justifique, designadamente de ordem financeira e, para além disso, de maneira particularmente discriminatória para magistrados e funcionários judiciais, já que os exclui desse subsistema, que se mantém para outras profissões, sem um critério que se entenda. Tudo isto é de notar, sem que haja uma verdadeira negociação, mas apenas a realização formal de reuniões para sermos confrontados com “os objectivos do Governo”, logo se afirmando “que este não deixará de os concretizar”. Paralelamente continuamos a ser apresentados à opinião pública como privilegiados, numa autêntica campanha visando o nosso descrédito.
Sejamos claros, se estivessem demonstradas razões que justificassem a necessidade de extinção deste subsistema de saúde, nomeadamente para contenção da despesa pública, nenhum juiz se oporia. Assim como ninguém também se oporia, até porque foram apresentadas propostas nesse sentido, à revisão dos deveres e direitos dos beneficiários, na medida do necessário e enquanto o fosse, para manutenção do SSMJ. Não podem é conformar-se com uma imposição apresentada sem fundamento sério. Basta ver que nem foi determinado o impacto na ADSE, resultante do engrossamento do número de beneficiários em mais de 80.000, e consequentemente no Orçamento do Estado. Essa questão foi por nós colocada, mas ficou sem resposta.
No momento em que escrevo estas linhas, foi divulgado pela comunicação social que o Governo aprovou o diploma revendo o regime jurídico dos SSMJ. Para quem ainda tivesse dúvidas, fica mais uma vez demonstrada a noção de negociação e diálogo deste Governo, tanto mais que em tempo útil a ASJP, ao abrigo da Lei da Negociação Colectiva, formalizou um pedido de negociação suplementar.
Os Juizes são titulares dos órgãos de soberania tribunais e não abdicarão nunca dessa qualidade. Os juizes querem condições efectivas que permitam aos tribunais administrarem a justiça em nome do povo, com independência e apenas sujeitos à lei, em tempo útil e equitativa, e com plena salvaguarda do direito de acesso a todos os cidadãos, independentemente dos seus meios económicos. Precisamente por isso, exigem a reforma da Justiça e reinvindicam o direito de participar nesse processo, como é próprio de um Estado de Direito Democrático, único caminho para evitar a total ruptura do sistema.
Enquanto titulares de órgãos de soberania, igualmente não abdicam de lutar por um estatuto sócio profissional compatível e condigno, até hoje nunca inteiramente reconhecido, proporcionado às especiais exigências e restrições a que estão sujeitos, exactamente em atenção àquela qualidade e enquanto condição da sua independência.
Sempre atendendo a essa mesma qualidade de titulares dos órgãos de soberania tribunais, muito menos podem aceitar de braços cruzados o comportamento institucional deste Governo, onde a arrogância, a demagogia e o populismo substituíram o diálogo, a seriedade e o respeito institucional elementares, conduzindo ao descrédito institucional da Justiça, e em particular dos Juizes.
Foi a gravidade da situação que levou a DN a deliberar a realização de greve e o Conselho Geral a determinar o respectivo período e datas, depois de muita ponderação, cientes da gravidade desta medida.
Sempre manifestámos o nosso propósito sério de diálogo, mas sem vermos qualquer abertura por parte do Governo.
Reafirmámos a nossa disponibilidade, séria e empenhada.
Restou-nos a Greve, direito constitucional cujo exercício nos assiste, e que a evolução das circunstâncias revelou ser o meio adequado e proporcionado a reagirmos e denunciarmos a política autoritária e demagógica deste Governo.
Contamos com a união de todos nós, porque a razão nos assiste e essa é a nossa maior força.

Jerónimo Freitas

Secretário-Geral da ASJP

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