Sunday, October 23

RETÁBULO DA ALMA CENSURADA


"…Mas se acaso, tirana, estrela ímpia,
é culpa o não ter culpa, eu culpa tenho.
Mas se a culpa que tenho não é culpa,
para que me usurpais com impiedade
o crédito, a esposa e a liberdade?"

António José da Silva, O Judeu


Ele chegou à hora marcada. Pontual, como sempre. O ritual, o do costume: abri-lhe a porta do escritório, cumprimentei-o, dirigimo-nos ao gabinete, trocámos as amenidades da praxe. Algo mudara, no entanto. Via-o mais curvado, com o olhar baço dos desesperançados. O fato cinzento evidenciava o uso extremo, e a camisa achava-se puída no colarinho e nos punhos. O relógio automático fora substituído no pulso por um modelo utilitário e anónimo, de plástico. Conheço-o há longos anos, desde os tempos de estágio. Fora um dos primeiros clientes do escritório, e nessa qualidade se mantivera ao longo dos anos. A crise impedira a actualização da avença de há um lustre para cá. Há cerca de um ano, comunicara-me, pesaroso e embaraçado, que não podia manter a avença, não porque estivesse insatisfeito com os serviços prestados, mas porque necessitava de cortar custos. Já o pressentira eu, a meio de acções declarativas à espera de Godot, de execuções frustradas por falta de bens, de impugnações paulianas que se arriscavam a tornar eternas. Continuámos, no entanto, a trabalhar. Menos trabalho, é certo, e menos conforto: os honorários tornaram-se mais exíguos, nalguns casos até simbólicos, as provisões mal davam, as mais das vezes, para as despesas. Paciência, pensei eu, é a função social da Advocacia, e melhores dias virão.
O que hoje o trouxera aqui fora a interposição de uma acção contra uma empresa sedeada em Itália, que fizera terminar o contrato de agência e se recusava a pagar a indemnização de clientela. A pretensão era justiciável e apresentava elevadas probabilidades de êxito, disse-lhe eu, após análise da documentação que me trouxera. Necessário era, para já, proceder à tradução para português dos documentos vertidos em língua estrangeira, a fim de instruir o processo. Vi-o mais confortado. Redigi e entreguei-lhe, como habitualmente, a comunicação de previsão para despesas, aí incluindo os previsíveis custos de expediente, traduções e taxa de justiça inicial. Mil e trezentos euros, rezava o total, dos quais a parte de leão respeitava à taxa de justiça. Ele arqueou as sobrancelhas, com indisfarçável espanto. "Tanto dinheiro, Senhor Doutor!", exclamou. Pois é, a justiça é um bem caro e caprichoso. Torceu e retorceu as mãos, e discorreu, mais para os seus botões do que para mim, sobre a situação aflitiva em que a empresa se encontrava, descapitalizada pela crise, é claro, mas sobretudo pelos créditos em contencioso, aqueles que se iam acumulando, em pó e pastas, no meu arquivo e nas secretarias dos tribunais; pelo IVA que se viu obrigado a entregar ao Estado, muito embora nunca o tivesse recebido dos clientes; pelo IVA que o Estado teria de devolver, não o fazendo nunca atempadamente; pelos consertos dos dois camiões abalroados por uma coluna militar, que esse mesmo Estado, condenado em primeira instância e tendo perdido todos os recursos, insistia em não pagar. "E se recorrêssemos ao apoio judiciário, senhor doutor? Bem vê que a situação da empresa não permite grandes despesas, e assim ficavam também assegurados os seus honorários.", lançou ele, na esperança de que essa fórmula mágica resolvesse o problema. Retorqui-lhe que tal não era possível. A bem da Nação, o legislador interviera, impossibilitando a escolha pelo interessado do Advogado da sua confiança para propositura ou contestação de acção cível, acaso necessitasse que a "res publica" suportasse os respectivos honorários, ainda que tabelados por baixo. Por igual arte, a dispensa do pagamento de taxa de justiça fora igualmente suprimida, excepto para casos extremos de indigência, daqueles que obrigam a dormir nas arcadas dos prédios e a vasculhar os caixotes do lixo. Agora, diz a lei, que é quem mais ordena, a Ordem impõe ao interessado um causídico (e ao causídico o interessado…) segundo critérios não legislados mas definidos por regulamento interno, de resto extremamente elucidativo; quem ainda não esteja reduzido à condição mendicante poderá sempre pagar os encargos do processo em prestações suaves, num regime xerografado dos tempos áureos do crédito ao consumo. Rezam as apologias desta solução inédita que assim se evitam as indignidades dos senhores que chegavam em carros de alta cilindrada ao Tribunal, para litigarem ao abrigo do apoio judiciário. Com a cumplicidade dos respectivos causídicos, supõe-se. Sucede que os causídicos, a esses, diz-lhes respeito representarem os seus clientes e, muito embora já tenham sido legalmente investidos nas improváveis qualidades de funcionários não remunerados dos tribunais e dos correios, não consta que tenham sido igualmente nomeados fiscais para a promoção da virtude e para a proscrição do vício, ou que lhes tenham sido facultados os meios para tal. Acresce que, na penúltima (como na actual) formatação legal da "protecção jurídica", a instrução do processo para o reconhecimento de tal direito cabia à Segurança Social, que presuntivamente deveria aquilatar da real situação patrimonial dos requerentes. Num Estado normal, não se resolve a incompetência do Estado, negando-se aos mais desprotegidos a liberdade de escolha para o exercício de direitos, nem se lhes instila o receio da vinculação perpétua a dívidas para os dissuadir do recurso à justiça. Mas este Estado, já se vê, anda perigosamente à deriva entre a República de San Marcos de Woody Allen e uma Camorra com tiques mediáticos, em que à promoção da justiça interessam sobretudo a supressão das férias judiciais, com a qual se pune essa casta de presuntivos madraços (funcionários judiciais, solicitados, magistrados e advogados); a aproximação à autotutela por via da desjudicialização; a eliminação das vias de recurso; e as necessidades "High Tech", como os futuristas formulários "online" para propositura de acções, uns jumentos cibernéticos e temperamentais, frequentemente emperrados e imunes às sevícias físicas.
Ele partiu, algo desalentado. Disse-me que iria tentar arranjar o dinheiro para a taxa de justiça. As traduções, essas, seriam feitas por duas primas, professoras de línguas. Os meus honorários, seriam pagos um dia, quando as coisas andassem melhor, no limite, quando a Ré lhe pagasse o peticionado.
O dia está a chegar ao fim. Espreito pela janela, e vejo a longa fila de trânsito que me engolirá e me arruinará a temperança e a paciência, caso decida sair já. Decido aguardar. Na estante, espreita-me um pequeno volume dedicado ao expressionismo. Abro-o e folheio-o, enquanto aguardo que a extinção das buzinadelas anuncie a hora propícia para a partida. Detenho-me na página que reproduz "O grito", de Edvard Munch. Tiro uma fotocópia, e junto-a à documentação que ele me deixou. Parece-me apropriado.

João C. Coelho de Lima
Advogado

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