Monday, October 24

ALGUMAS NOTAS SOBRE UMA EVENTUAL GREVE DE JUÍZES


Estando em discussão a possibilidade de ser decretada uma greve por parte de magistrados, foi-me solicitado um breve apontamento sobre a admissibilidade e consequências jurídicas de tal greve.

1. Admissibilidade

I. A greve, prevista do art. 57.º da Constituição (CRP), encontra-se regulada nos arts. 591.º a 606.º do Código do Trabalho (CT), regime que se aplica aos trabalhadores com contrato de trabalho, assim como àqueles que tenham uma relação jurídica de emprego público, que lhes confira a qualidade de funcionário ou agente da Administração Pública, por força do disposto no art. 5.º, alínea d), da Lei de Aprovação do Código do Trabalho. Daí, aplicar-se este regime a uma greve de juízes.
A admissibilidade da greve não é hoje contestada nos países que adoptaram sistemas políticos pluralistas e de economia de mercado — perspectivas que costumam encontrar-se associadas —, pois o direito de greve é inegável como instrumento corrector de desequilíbrios.
Não obstante o direito de greve ser incontestável e apesar do disposto no art. 57.º, n.º 2, da CRP, há que ponderar certos limites na sua actuação. Importa, por um lado, disciplinar a greve – que tem de ser exercida de boa fé (art. 582.º do CT) - e, por outro, determinar quais são as greves lícitas. Há, de facto, uma proibição constitucional de limitar o âmbito da greve, mas o Direito não pode admitir situações ilícitas sob o «manto» da greve.
Nem na Constituição (art. 57.º) nem nos arts. 591.º e ss. do CT se encontra qualquer definição deste instituto, mas pode definir-se a greve como a abstenção concertada da prestação de trabalho a efectuar por uma pluralidade de trabalhadores com vista à obtenção de fins comuns.

II. Quanto à abstenção, é sustentável que deva ser entendida como inactividade, como paralisação propriamente dita, não devendo as perturbações na relação de trabalho ser incluídas no conceito de greve. Apesar de discutível, considerar-se-á, assim, ilícita a greve de zelo, por pressupor uma deficiente prestação da actividade em vez da paralisação de trabalho.
Além disso, poderão ser ilícitas as greves em cujo exercício se violem princípios fundamentais de Direito, como seja os princípios da proporcionalidade, da adequação e da boa fé. Por exemplo, as greves que causem prejuízos exorbitantes ao empregador.
A ilicitude da greve pode advir de uma concertação entre diferentes prestadores de trabalho tendo em vista que, com reduzidos esforços, sejam causados elevados prejuízos. Por exemplo, sucessivas paralisações de um dia de diferentes trabalhadores, de modo a inviabilizar o funcionamento total da empresa durante uma semana.

III. No que respeita aos fins, os juízes podem recorrer à greve tendo em conta a prossecução de interesses laborais. Apesar de não serem trabalhadores – no sentido estrito, por não terem contrato de trabalho –, os juízes desenvolvem uma actividade no âmbito de uma relação laboral, justificando-se a defesa de interesses idênticos aos de um trabalhador, como a tabela salarial, o período normal de trabalho ou o direito ao repouso (férias, etc.). Assim, não integram o conceito técnico de greve as chamadas greves de estudantes ou de consumidores ou qualquer paralisação decretada por trabalhadores independentes, por exemplo os agentes comerciais de uma dada empresa, mas será greve em sentido técnico, a greve de juízes.


2. Legitimidade para declarar e fazer a greve

I. Apesar de, por vezes, se aludir à greve como a ultima ratio em dado conflito colectivo, não é necessário que, previamente, se recorra a um processo negocial e, chegando a um impasse, seja declarada a greve. Daí que os juízes, atendendo a um juízo de oportunidade, ainda que o processo negocial não tenha fracassado, podem declarar uma greve. É necessário, contudo, ter em conta as regras da boa fé (art. 582.º do CT).
O juízo de oportunidade, sem descurar uma base jurídica, assenta em factores de ordem política, económica e sócio-laboral. Razão pela qual, além do regime jurídico, a decisão de recurso à greve é usualmente ponderada atendendo, em especial, a critérios sócio-laborais e económicos; contudo, no caso dos juízes, há igualmente a ter em conta o impacto na opinião pública. A isto acresce que os juízes, como titulares de órgãos de soberania, no juízo de oportunidade, deverão pesar as consequências nefastas da decisão de decretarem uma paralisação nos tribunais, onde detêm o poder de decisão, não se encontrando, no que respeita ao exercício das suas funções, sujeitos ao poder de direcção do Estado (empregador).

II. Se os juízes consideram oportuno o recurso à greve, há que fazer a declaração de greve, a qual, em princípio, cabe às associações sindicais (art. 592.º, n.º 1, do CT), pois será difícil que estejam reunidas as circunstâncias para que a greve possa ser declarada por uma assembleias de juízes (art. 592.º, n.º 2, do CT).
Em princípio, quem declara a greve será o sindicato, mas quem faz a greve serão os juízes. Por isso, além da declaração de greve, há a adesão à greve, que é um acto livre e individual de cada juiz. O exercício do direito de greve não pode ser imposto nem pelo sindicato que a declarou nem pelos demais juízes. Qualquer juiz, sem atender ao facto de se encontrar sindicalizado, pode aderir à greve.
Tendo aderido à greve, independentemente da sua filiação, o juiz passa a ser representado pela associação sindical que declarou a greve (art. 593.º, n.º 1, do CT). Esta representação legal, que pode ser delegada (art. 593.º, n.º 2, do CT), respeita unicamente a este conflito colectivo.


3. Aviso prévio

I. A declaração de greve, quando feita a nível sindical, que é a regra, será tomada, em princípio, pela direcção do sindicato. Da declaração de greve deve constar o fim a atingir por essa luta colectiva; no fundo, a razão que levou a ser desencadeada a greve. Além disso, deve também ser determinada qual a data em que ela vai ter lugar, bem como a sua duração.

II. Declarada a greve, terá a mesma de ser comunicada mediante um aviso prévio (art. 595.º do CT). Esse pré-aviso tem de ser feito com uma antecedência mínima e deverá ser dirigido, por um lado, ao empregador – no caso, o Estado (Ministério da Justiça) – e ao Ministério do Trabalho (art. 595.º do CT).
O aviso prévio tem de ser feito com um prazo mínimo de cinco ou de dez dias úteis em relação à data de início da greve. No caso concreto da greve dos juízes, importa determinar se a actividade desenvolvida se destina à satisfação de necessidades sociais impreteríveis, nesse caso, o prazo deverá ser de dez dias úteis (art. 592.º, n.ºs 2 e 3, do CT). No art. 598.º, n.º 2, do CT enumeram-se, de forma exemplificativa, os sectores da economia que se destinam à satisfação de necessidades sociais impreteríveis da comunidade, não se incluindo as funções judiciais. Contudo, pode entender-se que a realização da justiça feita nos tribunais, através de serviços de atendimento ao público (alínea g)), nalguns casos, tem em vista a satisfação de necessidades essenciais impreteríveis, em particular no caso de réus presos.
O aviso prévio deverá ser efectuado pela entidade que declarou a greve, em regra o sindicato ou os sindicatos que a declararam, por meios idóneos, nomeadamente, por escrito ou através dos meios de comunicação social (art. 595.º, n.º 1, do CT).
Com respeito ao conteúdo, o aviso prévio serve para dar a conhecer ao empregador (no caso, o Estado) que vai ter lugar uma greve em determinada data. Dessa informação deve constar a indicação da greve e do seu âmbito (quais os trabalhadores por ela abrangidos, se é geral, sectorial, profissional, etc.), assim como a data em que a greve vai ter lugar e a sua duração.

III. Nos termos do disposto no n.º 3 do art. 595.º do CT, juntamente com o aviso prévio deve ser feita uma proposta de definição dos serviços necessários para os serviços mínimos (vd. art. 598.º do CT). Impõe-se, assim, à entidade que declara a greve (por via de regra, o sindicato) a apresentação de um plano de prestação de serviços relacionados com o funcionamento de serviços mínimos em benefício da comunidade. Em caso de incumprimento do dever de apresentar uma proposta de serviços mínimos aplica-se o disposto no art. 604.º do CT, relativo à responsabilidade por violação das regras da greve. Se do aviso prévio, enviado com a devida antecedência, faltar a proposta (séria) de definição dos serviços mínimos, a greve é ilícita, com as consequências constantes do art. 604.º do CT.


4. Efeitos da greve

I. Nos termos do art. 597.º, n.º 1, do CT, em relação aos juízes que tenham aderido à greve verifica-se a suspensão da relação jurídica. No mesmo preceito exemplifica-se, determinando que ficam suspensos o direito à retribuição e os deveres de subordinação e de assiduidade. Concretamente, ficam suspensos os efeitos principais da situação jurídica laboral. Haverá outros efeitos que subsistem mesmo durante o período de greve.
Em primeiro lugar, a greve pressupõe a abstenção do trabalho, deixando de ser devida a prestação de uma actividade. E, como o juiz não realiza a actividade, fica também desvinculado dos deveres de assiduidade e de subordinação. Mas subsistem deveres acessórios, como de lealdade ou de sigilo e outros resultantes dos deveres de actuar de boa fé durante o conflito colectivo (art. 582.º do CT).

II. No pólo oposto, o empregador (Estado) não fica vinculado ao dever de pagar a retribuição ao juiz em greve (art. 597.º, n.º 1, do CT), que perde o direito à remuneração na proporção em que a actividade não tenha sido exercida.
Esta perda de retribuição tem sido entendida como afectando tão-só a retribuição daquele mês, sem quaisquer repercussões nas restantes retribuições, designadamente não acarretando redução nos subsídios de Natal e de férias, que se mantêm por inteiro.
Relativamente aos complementos retributivos, a redução terá de ser vista em função da situação concreta, em particular, tendo em conta se esse complemento salarial está ou não relacionado com a prestação da actividade. Por exemplo, sendo a greve por um dia, justifica-se a perda do subsídio de alimentação ou de transporte desse dia, mas não parece razoável o desconto no subsídio de renda de casa.
O empregador (Estado), não obstante a greve, continua adstrito a deveres secundários emergentes da relação jurídica, em especial decorrentes da boa fé (art. 582.º do CT).


5. Serviços mínimos

I. Na medida em que os tribunais satisfazem de necessidades sociais impreteríveis, deve ser assegurada a prestação de serviços mínimos (art. 598.º, n.º 1, do CT).
No art. 598.º, n.º 2, do CT, exemplificam-se alguns dos sectores onde se considera que existem empresas prestando serviços para a satisfação de necessidades sociais impreteríveis, mas a ausência de referência expressa à actividade judicial não impede a inclusão deste sector entre aqueles que prestam serviços para a satisfação de necessidades sociais impreteríveis. Não sendo a enumeração taxativa, leva a que se possa admitir a existência de outros sectores, não indicados no elenco do art. 598.º, n.º 2, do CT, relativamente aos quais seja justificável o estabelecimento de serviços mínimos.

II. Com os serviços mínimos não se pretende assegurar a regularidade da actividade, mas tão-só as necessidades essenciais, sendo normalmente polémica a determinação de quais sejam as necessidades essenciais que têm de ser garantidas ao público.
Por vezes, torna-se extremamente difícil determinar quais os serviços mínimos que devem ser assegurados e, em certos casos, a prestação dos serviços mínimos implica que se assegure a actividade na sua totalidade.
A concretização dos serviços mínimos no caso de greve de juízes depende de uma ponderação atenta das necessidades sociais. A concretização será feita em dois planos; primeiro, na determinação de indispensabilidade do serviço e, segundo, na fixação do montante de serviços mínimos.

III. Nos termos do disposto no art. 599.º do CT, a definição dos serviços mínimos depende de acordo; acordo esse que, na falta de previsão em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, poderá ter por base a proposta constante do aviso prévio, a que alude o n.º 3 do art. 595.º do CT.
Não tendo sido possível chegar a acordo, e tratando-se de greve em serviços da administração directa do Estado – como é o caso dos tribunais – a definição dos serviços mínimos caberá a um colégio arbitral, nos termos constantes dos n.os 4 e 5 do art. 599.º do CT. Porém, como a lista de árbitros não está fixada, este mecanismo ainda não pode funcionar.
Definidos os serviços mínimos, por acordo ou por decisão arbitral, devem os representantes dos trabalhadores designar os juízes que ficam adstritos à prestação dos serviços mínimos com, pelo menos, quarenta e oito horas de antecedência relativamente ao início da greve (n.º 6, 1.ª parte). Se os representantes dos trabalhadores (por via de regra o sindicato que declarou a greve) não designarem, nas quarenta e oito horas anteriores ao início da greve, os juízes que ficam adstritos à prestação de serviços mínimos, cabe ao empregador (Estado) proceder a essa designação.

IV. Como resulta do art. 600.º do CT, o juiz que adere à greve e cumpre serviços mínimos, fica «(…) na estrita medida necessária à prestação desses serviços, sob a autoridade e direcção do empregador, tendo direito, nomeadamente, à retribuição».
PEDRO ROMANO MARTINEZ
Professor Doutor da Faculdade de Direito de Lisboa

1 Comments:

Blogger Valdecy Alves said...

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February 16, 2010  

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