DIREITO DE GREVE E MAGISTRATURAS - Razões de direito e razões de facto
1. Está aberta uma polémica com as declarações do Sindicato dos Magistrados do Ministério público, e da Associação Sindical dos Juízes Portugueses sobre a realização de uma greve no mês de Outubro.
Fui convidado a dar a minha opinião sobre a matéria, o que vou fazer abordando-a numa perspectiva do direito em si mesmo, procurando uma legitimidade para essa greve, e numa perspectiva da justeza das razões invocadas.
2. Alguns analistas interrogam-se da “legalidade” de os magistrados fazerem greve, querendo com isso dizer que não lhes seria legitimo adoptar tal forma de luta visto o poder judicial ser um órgão de soberania, afirmando-se que nunca se viu o presidente da república ou o governo ou a assembleia da república fazerem greve.
Todavia estas alegações não têm qualquer sustentabilidade na Constituição que ainda é a matriz de todas as normas e a lei Fundamental nomeadamente no que toca aos direitos liberdades e garantias.
Vejamos:
3. Não há dúvida de que os tribunais, congregando dois elementos humanos na sua composição (juízes e magistrados do Ministério Público), são um órgão de soberania (artigo 202º, da Constituição).
Órgão de soberania esse com particularidades que importa recordar.
Desde logo é o único que não é eleito. Ainda assim, ninguém discute da sua legitimidade democrática. É que todo o voto é uma expressão democrática, mas a democracia não se limita ao voto.
Depois, é um órgão de soberania que “depende” orgânica e materialmente de um outro órgão de soberania, o Governo, através do Ministro da Justiça. Caso único, porquanto não existem ministros para a Assembleia da República ou para o Presidente da República. Isto é, a gestão administrativa, material, do “poder judicial” depende de um outro poder, o executivo. Podemos dizer de outro modo: os magistrados pertencem a um órgão de soberania, mas simultaneamente e em termos meramente administrativos são considerados “funcionários” do Ministério da Justiça.
Outra particularidade, (até agora não invocada para ser aplicável aos demais órgãos de soberania) é a da avaliação do desempenho ou serviço prestado. Por lei, os magistrados estão sujeitos a uma avaliação de mérito, em termos jurídicos, isto é, uma avaliação do desempenho funcional segundo regras previamente definidas, de acordo com critérios legais gerais e universais, e avaliação essa realizada por Conselhos Superiores onde, aliás, os demais órgãos de soberania têm assento! Ora, não há esta avaliação de mérito para os outros órgãos...nem estou a ver que a Assembleia da República, o Presidente da República ou o Governo pudessem/devessem ser escrutinados por um qualquer “Conselho Superior” onde participassem elementos de outros órgãos de soberania, nomeadamente do poder judicial. Não estou a falar da avaliação política, mas sim de uma avaliação de mérito!
De igual modo, veja-se o que se prevê para o exercício da acção disciplinar dos magistrados ao qual não estão sujeitos nem a Assembleia da República, nem mesmo o Governo.
Acresce que os magistrados são os únicos inseridos numa carreira profissional…o que se não verifica quanto aos ministros, deputados ou mesmo Presidente da República.
E o mesmo se diga, quanto ao recrutamento, sendo que os magistrados são os únicos a ingressar por meio de um concurso público!
4. Na análise da questão em apreço estes factores não podem ser olvidados, na medida em que constituem, de modo essencial, diferenças que imporão regimes diferenciados. Portanto a alegação de que os magistrados não poderiam fazer greve, porquanto os outros órgãos de soberania também o não podem fazer, não tem acolhimento na medida em que não há uma equiparação absoluta entre os vários órgãos de soberania, sendo possível encontrar regimes diferenciados que os distinguem.
Não que com isto se pretenda aceitar a “funcionalização” da magistratura, no que se esconde por debaixo dessa funcionalização, que mais não seria do que “subordinação”.
5. O Título II da Constituição abre sob a epígrafe “Direitos, Liberdades e Garantias”, no qual se insere o Capítulo III sobre “Direitos, Liberdades e garantias dos Trabalhadores”.
A Constituição impõe, pelo artigo 17º, o regime daqueles primeiros aos segundos.
Impõe, assim, e para além do mais, que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”(n.º 2 do artigo 18º). Tais restrições são admissíveis para os militares e agentes de segurança (vide artigo 270º), mas mesmo aí “na estrita medida das exigências próprias das respectivas funções”.
Não prevendo a Constituição, nem os Estatutos dos magistrados, qualquer restrição ao exercício do direito de greve, não há qualquer desconformidade legal no seu decretamento. Há outras restrições acolhidas nos Estatutos (veja-se, v.g., a proibição do exercício de actividades politico-partidárias de natureza pública), mas não a greve.
6. Um outro argumento que importa trazer à colação é o previsto sobre a liberdade sindical. Na justa medida em que a Constituição não admite restrições a este direito (cfr. supra), a coerência legal leva então a admitir a existência de associações sindicais e sindicatos nas magistraturas. Como acontece em modelos semelhantes à nossa organização judiciária, como é o caso da Itália.
A Constituição, no artigo 56º, confere aos sindicatos e associações sindicais certas atribuições, nas quais se destaca a de “participar na elaboração da legislação do trabalho” bem como a de “exercer o direito de contratação colectiva, garantido nos termos da lei”.
E a este respeito, refira-se já que, no âmbito dos procedimentos de aprovação de medidas pelo Governo e pela Assembleia da República, o SMMP e a ASJP foram convocados expressamente para a “negociação colectiva”, o mesmo é dizer que, até agora, não se colocou a questão da “legitimidade” destas entidades quanto ao exercício dos direitos que a Constituição e a lei lhes outorgam.
7. O direito de greve é o corolário desses direitos outorgados pela Constituição às associações sindicais como “defender e promover a defesa dos direitos e interesses” de quem representam (vide artigo 56º, n.º 1). Corolário constitucional, consagrado de forma solene e incisiva pelo artigo 57º.
8. Por sua vez a lei ordinária não faz qualquer restrição ou proibição quanto ao exercício do direito de greve pelos magistrados, nem o poderia fazer por absoluta ausência de norma constitucional habilitante para o efeito. E qualquer tentativa de alterar a lei ordinária, quanto a este aspecto, sem alterar previamente a Constituição, corresponderá a um “golpe constitucional” ao qual as instâncias competentes não deixariam, estou certo, de aplicar o juízo de desconformidade com a Lei Fundamental.
9. A conclusão quanto à primeira questão que nos propusemos analisar é, portanto, esta: o exercício do direito de greve pelas magistraturas tem plena consistência legal, quer no plano constitucional quer da lei ordinária.
10. Tínhamo-nos proposto analisar, também, se haveria fundamentos e justificação para tal exercício. Aqui não posso deixar de invocar a minha qualidade de Secretário-Geral da direcção do S.M.M.P., não só para isso ser levado em consideração no acto de ponderação objectiva, quer porque tal posição me traz o conhecimento cabal das situações que estão na base não só desta greve anunciada mas também de todo o descontentamento com as medidas aprovadas ou anunciadas pelo Governo.
11. Em audiência pedida pela direcção do S.M.M.P., no início do mandato, (Abril de 2005), a equipa ministerial da Justiça ouviu da nossa parte não só a apresentação de uma série de preocupações pela persistência dos problemas da área, como também ouviu a manifestação da disponibilidade em participar na procura das melhores soluções, contando nomeadamente com o conhecimento dos problemas e com a vontade de os resolver.
12. Porém, o Governo, e mais especificamente o Ministério da Justiça, limitou-se a apresentar sucessivamente um conjunto de medidas, visando atacar os já célebres “privilégios”, desde as férias judiciais, o congelamento da progressão de carreiras, o congelamento dos aumentos dos suplementos (“rasgando” protocolos celebrados com anteriores governos), a extinção do subsistema de saúde no âmbito dos Serviços Sociais do Ministério da Justiça.
E apesar de o SMMP ter sempre apresentado contrapropostas sérias, ponderadas e exequíveis, a tudo o Governo apenas respondeu de que não recuaria.
13. Mais: o governo tem vindo a alimentar uma campanha, através das declarações públicas dos seus vários responsáveis, de que se trata de privilégios injustificados, querendo com isso encontrar formas de afastar a crítica para a sua incapacidade de ir resolvendo os problemas estruturais da justiça, arremessando contra os magistrados responsabilidades que são, manifestamente, do poder político.
14. Demos diversas oportunidades ao Governo para se estabelecer um diálogo construtivo, (e não de surdos!).
Manifestámos a nossa disponibilidade para, em conjunto com todos os cidadãos, contribuir para a resolução dos problemas do país, e, de modo especial, os verdadeiros problemas da área da justiça. Estes, pelos quais nos batemos, continuam por resolver... como sempre!
A isto tudo o Governo vem respondendo com a arrogância de um poder derivado de uma maioria absoluta… que não é eterna, nem necessariamente lúcida.
A greve tem pois razões de facto para se fazer.
15. Por tudo o que se expõe dúvidas não tenho da legalidade e da justeza desta greve que se avizinha.
JORGE COSTA
PROCURADOR DA REPÚBLICA E SECRETÁRIO-GERAL DO SMMP
Fui convidado a dar a minha opinião sobre a matéria, o que vou fazer abordando-a numa perspectiva do direito em si mesmo, procurando uma legitimidade para essa greve, e numa perspectiva da justeza das razões invocadas.
2. Alguns analistas interrogam-se da “legalidade” de os magistrados fazerem greve, querendo com isso dizer que não lhes seria legitimo adoptar tal forma de luta visto o poder judicial ser um órgão de soberania, afirmando-se que nunca se viu o presidente da república ou o governo ou a assembleia da república fazerem greve.
Todavia estas alegações não têm qualquer sustentabilidade na Constituição que ainda é a matriz de todas as normas e a lei Fundamental nomeadamente no que toca aos direitos liberdades e garantias.
Vejamos:
3. Não há dúvida de que os tribunais, congregando dois elementos humanos na sua composição (juízes e magistrados do Ministério Público), são um órgão de soberania (artigo 202º, da Constituição).
Órgão de soberania esse com particularidades que importa recordar.
Desde logo é o único que não é eleito. Ainda assim, ninguém discute da sua legitimidade democrática. É que todo o voto é uma expressão democrática, mas a democracia não se limita ao voto.
Depois, é um órgão de soberania que “depende” orgânica e materialmente de um outro órgão de soberania, o Governo, através do Ministro da Justiça. Caso único, porquanto não existem ministros para a Assembleia da República ou para o Presidente da República. Isto é, a gestão administrativa, material, do “poder judicial” depende de um outro poder, o executivo. Podemos dizer de outro modo: os magistrados pertencem a um órgão de soberania, mas simultaneamente e em termos meramente administrativos são considerados “funcionários” do Ministério da Justiça.
Outra particularidade, (até agora não invocada para ser aplicável aos demais órgãos de soberania) é a da avaliação do desempenho ou serviço prestado. Por lei, os magistrados estão sujeitos a uma avaliação de mérito, em termos jurídicos, isto é, uma avaliação do desempenho funcional segundo regras previamente definidas, de acordo com critérios legais gerais e universais, e avaliação essa realizada por Conselhos Superiores onde, aliás, os demais órgãos de soberania têm assento! Ora, não há esta avaliação de mérito para os outros órgãos...nem estou a ver que a Assembleia da República, o Presidente da República ou o Governo pudessem/devessem ser escrutinados por um qualquer “Conselho Superior” onde participassem elementos de outros órgãos de soberania, nomeadamente do poder judicial. Não estou a falar da avaliação política, mas sim de uma avaliação de mérito!
De igual modo, veja-se o que se prevê para o exercício da acção disciplinar dos magistrados ao qual não estão sujeitos nem a Assembleia da República, nem mesmo o Governo.
Acresce que os magistrados são os únicos inseridos numa carreira profissional…o que se não verifica quanto aos ministros, deputados ou mesmo Presidente da República.
E o mesmo se diga, quanto ao recrutamento, sendo que os magistrados são os únicos a ingressar por meio de um concurso público!
4. Na análise da questão em apreço estes factores não podem ser olvidados, na medida em que constituem, de modo essencial, diferenças que imporão regimes diferenciados. Portanto a alegação de que os magistrados não poderiam fazer greve, porquanto os outros órgãos de soberania também o não podem fazer, não tem acolhimento na medida em que não há uma equiparação absoluta entre os vários órgãos de soberania, sendo possível encontrar regimes diferenciados que os distinguem.
Não que com isto se pretenda aceitar a “funcionalização” da magistratura, no que se esconde por debaixo dessa funcionalização, que mais não seria do que “subordinação”.
5. O Título II da Constituição abre sob a epígrafe “Direitos, Liberdades e Garantias”, no qual se insere o Capítulo III sobre “Direitos, Liberdades e garantias dos Trabalhadores”.
A Constituição impõe, pelo artigo 17º, o regime daqueles primeiros aos segundos.
Impõe, assim, e para além do mais, que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”(n.º 2 do artigo 18º). Tais restrições são admissíveis para os militares e agentes de segurança (vide artigo 270º), mas mesmo aí “na estrita medida das exigências próprias das respectivas funções”.
Não prevendo a Constituição, nem os Estatutos dos magistrados, qualquer restrição ao exercício do direito de greve, não há qualquer desconformidade legal no seu decretamento. Há outras restrições acolhidas nos Estatutos (veja-se, v.g., a proibição do exercício de actividades politico-partidárias de natureza pública), mas não a greve.
6. Um outro argumento que importa trazer à colação é o previsto sobre a liberdade sindical. Na justa medida em que a Constituição não admite restrições a este direito (cfr. supra), a coerência legal leva então a admitir a existência de associações sindicais e sindicatos nas magistraturas. Como acontece em modelos semelhantes à nossa organização judiciária, como é o caso da Itália.
A Constituição, no artigo 56º, confere aos sindicatos e associações sindicais certas atribuições, nas quais se destaca a de “participar na elaboração da legislação do trabalho” bem como a de “exercer o direito de contratação colectiva, garantido nos termos da lei”.
E a este respeito, refira-se já que, no âmbito dos procedimentos de aprovação de medidas pelo Governo e pela Assembleia da República, o SMMP e a ASJP foram convocados expressamente para a “negociação colectiva”, o mesmo é dizer que, até agora, não se colocou a questão da “legitimidade” destas entidades quanto ao exercício dos direitos que a Constituição e a lei lhes outorgam.
7. O direito de greve é o corolário desses direitos outorgados pela Constituição às associações sindicais como “defender e promover a defesa dos direitos e interesses” de quem representam (vide artigo 56º, n.º 1). Corolário constitucional, consagrado de forma solene e incisiva pelo artigo 57º.
8. Por sua vez a lei ordinária não faz qualquer restrição ou proibição quanto ao exercício do direito de greve pelos magistrados, nem o poderia fazer por absoluta ausência de norma constitucional habilitante para o efeito. E qualquer tentativa de alterar a lei ordinária, quanto a este aspecto, sem alterar previamente a Constituição, corresponderá a um “golpe constitucional” ao qual as instâncias competentes não deixariam, estou certo, de aplicar o juízo de desconformidade com a Lei Fundamental.
9. A conclusão quanto à primeira questão que nos propusemos analisar é, portanto, esta: o exercício do direito de greve pelas magistraturas tem plena consistência legal, quer no plano constitucional quer da lei ordinária.
10. Tínhamo-nos proposto analisar, também, se haveria fundamentos e justificação para tal exercício. Aqui não posso deixar de invocar a minha qualidade de Secretário-Geral da direcção do S.M.M.P., não só para isso ser levado em consideração no acto de ponderação objectiva, quer porque tal posição me traz o conhecimento cabal das situações que estão na base não só desta greve anunciada mas também de todo o descontentamento com as medidas aprovadas ou anunciadas pelo Governo.
11. Em audiência pedida pela direcção do S.M.M.P., no início do mandato, (Abril de 2005), a equipa ministerial da Justiça ouviu da nossa parte não só a apresentação de uma série de preocupações pela persistência dos problemas da área, como também ouviu a manifestação da disponibilidade em participar na procura das melhores soluções, contando nomeadamente com o conhecimento dos problemas e com a vontade de os resolver.
12. Porém, o Governo, e mais especificamente o Ministério da Justiça, limitou-se a apresentar sucessivamente um conjunto de medidas, visando atacar os já célebres “privilégios”, desde as férias judiciais, o congelamento da progressão de carreiras, o congelamento dos aumentos dos suplementos (“rasgando” protocolos celebrados com anteriores governos), a extinção do subsistema de saúde no âmbito dos Serviços Sociais do Ministério da Justiça.
E apesar de o SMMP ter sempre apresentado contrapropostas sérias, ponderadas e exequíveis, a tudo o Governo apenas respondeu de que não recuaria.
13. Mais: o governo tem vindo a alimentar uma campanha, através das declarações públicas dos seus vários responsáveis, de que se trata de privilégios injustificados, querendo com isso encontrar formas de afastar a crítica para a sua incapacidade de ir resolvendo os problemas estruturais da justiça, arremessando contra os magistrados responsabilidades que são, manifestamente, do poder político.
14. Demos diversas oportunidades ao Governo para se estabelecer um diálogo construtivo, (e não de surdos!).
Manifestámos a nossa disponibilidade para, em conjunto com todos os cidadãos, contribuir para a resolução dos problemas do país, e, de modo especial, os verdadeiros problemas da área da justiça. Estes, pelos quais nos batemos, continuam por resolver... como sempre!
A isto tudo o Governo vem respondendo com a arrogância de um poder derivado de uma maioria absoluta… que não é eterna, nem necessariamente lúcida.
A greve tem pois razões de facto para se fazer.
15. Por tudo o que se expõe dúvidas não tenho da legalidade e da justeza desta greve que se avizinha.
JORGE COSTA
PROCURADOR DA REPÚBLICA E SECRETÁRIO-GERAL DO SMMP
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