FÉRIAS JUDICIAIS - NO LIMITE
A distância de algum tempo entretanto decorrido, já vai tornando possível uma reflexão serena que busque as causas profundas que determinaram a atitude de confronto com os juízes, assumida como prioridade pelo actual executivo, logo no início de funções, quando o primeiro ministro revelou como preocupações primordiais, a par da distribuição de medicamentos nos supermercados, o corte das férias dos juízes.
Nem mais. Quando o país aguardava ansioso o anúncio de medidas de combate à profunda crise económica, social e política, génese do descontentamento que viabilizara a nova maioria absoluta, eis a pública e oportuna denúncia de dois grupos poderosos, beneficiários de privilégios a que urge pôr termo: a associação das farmácias e a corporação dos juízes.
Com desconsertante leviandade, prescindindo de qualquer reflexão séria sobre o tema, no discurso político ficaram definidas as razões da profunda crise da justiça, descobertos os culpados e encontrada a solução: quase tudo se resume, afinal, aos privilégios de uma classe poderosa, que, contrariamente ao comum dos mortais, dedica três longos meses ao laser, para além de pouco produzir nos restantes nove que para o efeito lhe sobram em cada ano.
Perante a profunda gravidade da injúria, procurou-se superficialmente a justificação da hostilidade que a determinou, no processo “Casa Pia” e no folclore mediático que o rodeou, visão simplista e redutora de uma questão que não se resume a vinganças pessoais ou partidárias.
Há que procurar mais fundo a génese da ofensiva que nos trouxe a desmoralização colectiva, traduzida no desconforto do sentimento de injustiça, definindo as causas e questionando o futuro.
Não constitui novidade a culpabilização dos juízes pela crise dramática da justiça, por parte dos sucessivos executivos, mais pelos silêncios e omissões, menos pela sua afirmação frontal, mas nunca se foi tão longe na destruição dos alicerces legitimadores da função de julgar, particularmente no que respeita ao prestígio da magistratura, que dificilmente sobrevive ao odioso da acusação infundada de privilégios injustos e de falta de dedicação profissional, implícita no discurso político.
Com esta transferência de culpas, o poder político realiza dois objectivos: desresponsabiliza-se perante os eleitores, desobrigando-se de qualquer reforma estrutural da justiça, passando a imagem de que bastará a redução do excessivo tempo de laser dos protagonistas do sistema, responsáveis pela crise; e fragiliza o poder judicial, que, devido às novas concepções do estado de direito, passou a invadir áreas cada vez mais importantes da administração pública, chamando o poder executivo a responder, cada vez mais, pela prática de actos que, até há pouco tempo, estavam subtraídos ao conhecimento dos tribunais.
O confronto a que assistimos não será mais de que o reflexo desta relação de equilíbrio instável entre o poder político e o poder judicial, num momento de profundas alterações, em que as regras da transparência exigem cada vez mais a incómoda intervenção deste na esfera daquele, no controle de legalidade, tantas vezes entendido como abusiva limitação do poder legitimado pelo sufrágio (daí o recurso à crítica de falta de legitimidade dos juízes, perante a reeleição “reabilitadora” de autarcas pronunciados pela prática de crimes).
Neste confronto, vulnerabilizam-nos dois factores: o estatuto e o processo.
Quanto ao estatuto, assume particular relevo a incontornável contradição entre a qualidade de titular dum órgão de soberania (que confere autonomia e independência) e a qualidade de funcionário (traduzida num vínculo de subordinação), o que faz com que a valorização de uma dessas componentes apague necessariamente a outra.
Por essa razão, quando o poder político censura o funcionário, descredibiliza o poder judicial através de um expediente que a opinião pública aceita sem reservas (por considerar de elementar justiça que todos os funcionários tenham o mesmo período de férias), sendo o mesmo funcionário, esforçado e zeloso, quem responde à censura, com a promessa de mais zelo e menos esforço, na sequência de uma reunião sindical, onde foram mesmo propostas outras “formas de luta”, como greves por tempo indeterminado.
O conflito entre poderes (político e judicial) fica assim reduzido ao confronto entre administração e funcionário, transferido para um terreno minado favorável à administração, como legítima entidade patronal, apoiada por uma opinião pública avessa a alegados privilégios, ávida do sensacionalismo dos meios de comunicação, surda à tímida e ineficaz reposição da verdade por parte das estruturas representativas dos juízes.
Com esta estratégia, o poder político tira partido da “funcionalização” dos juízes, consolidada por sucessivas gerações de dedicação ilimitada à função, que nos legaram uma herança de integridade profissional, mas que, tal como ocorre hoje connosco, ficaram com o horizonte limitado pelas pilhas de processos, que não nos permitem ver mais longe … para além dos processos.
Há que assumir a responsabilidade que temos na irrelevância que o poder político hoje nos atribui, até porque nunca questionámos o modelo de organização e de gestão da magistratura e as suas inter-relações com o poder político, nunca tivemos uma voz institucional audível nos corredores do poder político e da comunicação social, e permitimos que se apagasse a dignidade do órgão de soberania e prevalecesse a subalternidade do funcionário, que os políticos nem sequer se dão ao trabalho de ouvir antes de tomarem decisões sobre a justiça.
A urgente dignificação da função passa por uma alteração do seu modelo, que, definitivamente, concretize a autonomia e a independência do poder judicial, com a gestão efectiva (financeira e administrativamente autónoma com todos os recursos e meios necessários) da magistratura judicial, por um único órgão (nunca se percebeu a existência de dois conselhos superiores), garantindo-se um equilíbrio na sua composição que neutralize as críticas de perigo de corporativismo que habitualmente se erguem perante esta proposta, de forma a prevalecer o titular da soberania, sobre o funcionário subalterno que o poder político gosta de maltratar.
O outro factor referido – o processo – não é mais do que um emaranhado labiríntico do qual somos todos os dias prisioneiros, laboriosamente tecido pelo legislador, por desconfiar dos juízes.
Quanto mais se clama por uma justiça rápida, mais se garante o alucinante «sobe e desce» de tudo quanto é decisão judicial, mesmo na ínfima bagatela civil ou contra-ordenacional, obrigando a exaustivas fundamentações e exigências formais, abrindo caminho à penosa ascensão do processo, de preferência até ao Tribunal Constitucional, que assim realiza a velha ambição de cúpula do sistema judiciário.
A tendência é para tornar questionáveis e provisórias todas as decisões da primeira instância, mesmo as que se reportam a meros incidentes processuais, independentemente do valor ou da relevância da causa, porque nem o legislador nem a sociedade podem confiar em julgadores todos os dias postos em causa na praça pública.
Os mediáticos incidentes de suspeição do “processo Casa Pia” ilustram bem o limite da indignidade a que chegámos, pondo-se em causa a integridade do juiz por mera estratégia processual, despindo-o de autoridade perante a opinião pública, passando a mensagem de que se pode remover como qualquer outro obstáculo que desagrade aos intervenientes no processo, revelando o descrédito e a desconfiança que o legislador processual lhe atribui, quando abre a porta a todos os excessos, em nome de um único valor sagrado – a defesa do arguido.
Nestes dias de todos os descontentamentos, ultrapassados pela alteração das relações de poder, confrontados com a emergência do poder mediático nos tribunais, com o qual não sabem lidar, hostilizados pela opinião pública incendiada pela demagogia do poder político, meros operários numa engrenagem que não permite a criatividade nem reconhece o mérito, os juízes chegaram ao limite do suportável, e a reconquista do respeito e da dignidade da função não passa pela greve ou “outras formas de luta” do funcionário, mas pela afirmação da soberania do magistrado, que implica uma profunda alteração do estatuto e do processo, com reposição do equilíbrio entre o poder judicial e os restantes poderes.
Nem mais. Quando o país aguardava ansioso o anúncio de medidas de combate à profunda crise económica, social e política, génese do descontentamento que viabilizara a nova maioria absoluta, eis a pública e oportuna denúncia de dois grupos poderosos, beneficiários de privilégios a que urge pôr termo: a associação das farmácias e a corporação dos juízes.
Com desconsertante leviandade, prescindindo de qualquer reflexão séria sobre o tema, no discurso político ficaram definidas as razões da profunda crise da justiça, descobertos os culpados e encontrada a solução: quase tudo se resume, afinal, aos privilégios de uma classe poderosa, que, contrariamente ao comum dos mortais, dedica três longos meses ao laser, para além de pouco produzir nos restantes nove que para o efeito lhe sobram em cada ano.
Perante a profunda gravidade da injúria, procurou-se superficialmente a justificação da hostilidade que a determinou, no processo “Casa Pia” e no folclore mediático que o rodeou, visão simplista e redutora de uma questão que não se resume a vinganças pessoais ou partidárias.
Há que procurar mais fundo a génese da ofensiva que nos trouxe a desmoralização colectiva, traduzida no desconforto do sentimento de injustiça, definindo as causas e questionando o futuro.
Não constitui novidade a culpabilização dos juízes pela crise dramática da justiça, por parte dos sucessivos executivos, mais pelos silêncios e omissões, menos pela sua afirmação frontal, mas nunca se foi tão longe na destruição dos alicerces legitimadores da função de julgar, particularmente no que respeita ao prestígio da magistratura, que dificilmente sobrevive ao odioso da acusação infundada de privilégios injustos e de falta de dedicação profissional, implícita no discurso político.
Com esta transferência de culpas, o poder político realiza dois objectivos: desresponsabiliza-se perante os eleitores, desobrigando-se de qualquer reforma estrutural da justiça, passando a imagem de que bastará a redução do excessivo tempo de laser dos protagonistas do sistema, responsáveis pela crise; e fragiliza o poder judicial, que, devido às novas concepções do estado de direito, passou a invadir áreas cada vez mais importantes da administração pública, chamando o poder executivo a responder, cada vez mais, pela prática de actos que, até há pouco tempo, estavam subtraídos ao conhecimento dos tribunais.
O confronto a que assistimos não será mais de que o reflexo desta relação de equilíbrio instável entre o poder político e o poder judicial, num momento de profundas alterações, em que as regras da transparência exigem cada vez mais a incómoda intervenção deste na esfera daquele, no controle de legalidade, tantas vezes entendido como abusiva limitação do poder legitimado pelo sufrágio (daí o recurso à crítica de falta de legitimidade dos juízes, perante a reeleição “reabilitadora” de autarcas pronunciados pela prática de crimes).
Neste confronto, vulnerabilizam-nos dois factores: o estatuto e o processo.
Quanto ao estatuto, assume particular relevo a incontornável contradição entre a qualidade de titular dum órgão de soberania (que confere autonomia e independência) e a qualidade de funcionário (traduzida num vínculo de subordinação), o que faz com que a valorização de uma dessas componentes apague necessariamente a outra.
Por essa razão, quando o poder político censura o funcionário, descredibiliza o poder judicial através de um expediente que a opinião pública aceita sem reservas (por considerar de elementar justiça que todos os funcionários tenham o mesmo período de férias), sendo o mesmo funcionário, esforçado e zeloso, quem responde à censura, com a promessa de mais zelo e menos esforço, na sequência de uma reunião sindical, onde foram mesmo propostas outras “formas de luta”, como greves por tempo indeterminado.
O conflito entre poderes (político e judicial) fica assim reduzido ao confronto entre administração e funcionário, transferido para um terreno minado favorável à administração, como legítima entidade patronal, apoiada por uma opinião pública avessa a alegados privilégios, ávida do sensacionalismo dos meios de comunicação, surda à tímida e ineficaz reposição da verdade por parte das estruturas representativas dos juízes.
Com esta estratégia, o poder político tira partido da “funcionalização” dos juízes, consolidada por sucessivas gerações de dedicação ilimitada à função, que nos legaram uma herança de integridade profissional, mas que, tal como ocorre hoje connosco, ficaram com o horizonte limitado pelas pilhas de processos, que não nos permitem ver mais longe … para além dos processos.
Há que assumir a responsabilidade que temos na irrelevância que o poder político hoje nos atribui, até porque nunca questionámos o modelo de organização e de gestão da magistratura e as suas inter-relações com o poder político, nunca tivemos uma voz institucional audível nos corredores do poder político e da comunicação social, e permitimos que se apagasse a dignidade do órgão de soberania e prevalecesse a subalternidade do funcionário, que os políticos nem sequer se dão ao trabalho de ouvir antes de tomarem decisões sobre a justiça.
A urgente dignificação da função passa por uma alteração do seu modelo, que, definitivamente, concretize a autonomia e a independência do poder judicial, com a gestão efectiva (financeira e administrativamente autónoma com todos os recursos e meios necessários) da magistratura judicial, por um único órgão (nunca se percebeu a existência de dois conselhos superiores), garantindo-se um equilíbrio na sua composição que neutralize as críticas de perigo de corporativismo que habitualmente se erguem perante esta proposta, de forma a prevalecer o titular da soberania, sobre o funcionário subalterno que o poder político gosta de maltratar.
O outro factor referido – o processo – não é mais do que um emaranhado labiríntico do qual somos todos os dias prisioneiros, laboriosamente tecido pelo legislador, por desconfiar dos juízes.
Quanto mais se clama por uma justiça rápida, mais se garante o alucinante «sobe e desce» de tudo quanto é decisão judicial, mesmo na ínfima bagatela civil ou contra-ordenacional, obrigando a exaustivas fundamentações e exigências formais, abrindo caminho à penosa ascensão do processo, de preferência até ao Tribunal Constitucional, que assim realiza a velha ambição de cúpula do sistema judiciário.
A tendência é para tornar questionáveis e provisórias todas as decisões da primeira instância, mesmo as que se reportam a meros incidentes processuais, independentemente do valor ou da relevância da causa, porque nem o legislador nem a sociedade podem confiar em julgadores todos os dias postos em causa na praça pública.
Os mediáticos incidentes de suspeição do “processo Casa Pia” ilustram bem o limite da indignidade a que chegámos, pondo-se em causa a integridade do juiz por mera estratégia processual, despindo-o de autoridade perante a opinião pública, passando a mensagem de que se pode remover como qualquer outro obstáculo que desagrade aos intervenientes no processo, revelando o descrédito e a desconfiança que o legislador processual lhe atribui, quando abre a porta a todos os excessos, em nome de um único valor sagrado – a defesa do arguido.
Nestes dias de todos os descontentamentos, ultrapassados pela alteração das relações de poder, confrontados com a emergência do poder mediático nos tribunais, com o qual não sabem lidar, hostilizados pela opinião pública incendiada pela demagogia do poder político, meros operários numa engrenagem que não permite a criatividade nem reconhece o mérito, os juízes chegaram ao limite do suportável, e a reconquista do respeito e da dignidade da função não passa pela greve ou “outras formas de luta” do funcionário, mas pela afirmação da soberania do magistrado, que implica uma profunda alteração do estatuto e do processo, com reposição do equilíbrio entre o poder judicial e os restantes poderes.
Carlos Querido
Juiz de Direito
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