Thursday, February 2

O PRIMEIRO PASSO

Comunicação ao VII Congresso dos Juízes Portugueses
Carvoeiro, 25 de Novembro de 2005


Estou preocupada! Quando relembro o último congresso em Aveiro, em que havia duas salas com apresentação de comunicações em simultâneo não posso deixar de reparar que a participação activa no presente é muito pequena. Demasiado pequena para a época que vivemos. Em Aveiro os juízes não tinham acabado de fazer uma greve. Foi agora, apenas há alguns dias que a fizeram! Ninguém diria! Com excepção para as corajosas e estimulantes palavras que generosamente ontem nos foram oferecidas pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e não descurando naturalmente da pertinência e valor das anteriores apresentações, NÃO VEJO CHAMA! Por isso, antes do mais permitam-me que dirija especialmente ao Sr. Conselheiro Nunes da Cruz o meu sincero: MUITO OBRIGADA!
Hesitei se deveria vir a este congresso. O privilégio de me encontrar dispensada de serviço – este, sim, um privilégio – nem por um momento me atenuou a vontade de estar presente. O problema era que nem tudo o que tinha para dizer me parecia constituir opinião muito popular no seio da classe. Uma crítica dirigida aos juízes nos últimos tempos acabaria por revelar-se determinante: “não se ouvem as nossas vozes quando está em causa a justiça. Só nos fazemos ouvir na defesa das nossas regalias.”
Não é verdade! Só uma deliberada falta de atenção às publicações que integram textos da autoria de juízes pode explicar a injustiça daquela censura quando feita por juristas. A Justiça não interessa, todavia, apenas a juristas e essa realidade, sim, parece que nós juízes temos esquecido com demasiada frequência. Com justiça, ou sem ela, a verdade é que as intervenções públicas por parte dos juízes de denúncia às debilidades do nosso sistema de Justiça não foram suficientes. E da nossa passividade cresceu o tom exterior das críticas. Do nosso silêncio para as verdadeiras questões que ferem a Justiça nasceu a injustiça da maior parte dos defeitos que nos apontam. A presença neste congresso de muitos juízes - que sei serem também bastante críticos em relação ao actual estado das coisas - sem que até ao momento tenham tido qualquer intervenção deixa-me por isso especialmente preocupada. Em particular no caso dos mais jovens. Onde anda, por exemplo, o entusiasmo na reivindicação da contingentação tão firmemente apresentada no congresso de Aveiro? Pelo facto de não ter alcançado acolhimento do legislador deixou de ser prioridade para os juízes? Foi ultrapassada por outros temas mais «quentes»?
O recente contacto estabelecido com a realidade dos tribunais estrangeiros, e especialmente na Alemanha - para nós juristas portugueses, referência de excelência -, proporcionou-me uma nova perspectiva de algumas questões que ultimamente têm estado na ordem do dia dos juízes portugueses. Tive o privilégio – mais um – de visitar, durante este mês, tribunais de Brasília e de Munique em pleno funcionamento. Vir aqui hoje e ignorar as impressões que ali colhi seria desonestidade que nenhum juiz aceitaria.
A verdade é que regressei com uma sensibilidade diferente à prioridade dada a algumas das nossas reivindicações associativas. Não somos nós um país visivelmente menos rico do que a Alemanha, apesar daquilo que por lá se designa de “estado de pobreza” que os atingiu? Pois bem, na Baviera os juízes auferem vencimentos semelhantes aos dos juízes portugueses. Os tribunais mantêm-se em plenas funções durante todo o ano apesar de os juízes terem naturalmente direito a férias e à escolha do período em que as gozam. Mas o que mais me impressionou nos juízes alemães foi a simplicidade (quase «franciscana») dos seus gabinetes onde nem a presença de um computador destoa! Não têm «tribunal XXI»! Mas, em contrapartida, não se queixam de excesso de trabalho. Regressam a horas normais a casa e sentem-se respeitados pela população e governo! Quando lhes perguntava se admitiam fazer greve por falta de condições de trabalho, respondiam: impensável! Desde logo porque o seu estatuto de equiparados a funcionários não lhes confere o direito à greve. Depois, nenhum alemão compreenderia uma tal atitude por parte dos seus juízes e, por fim, porque não sentem falta de condições de trabalho.
Não vim aqui discutir opções do passado, ainda que recente, cuja explicação só consigo encontrar na anterior humilhação pública a que os juízes portugueses foram sujeitos. De resto, será provavelmente muito pouco o que nos une aos juízes alemães, para além do facto de exercermos funções em estados membros de uma mesma União cujo principal motor económico é precisamente a Alemanha.
Por seu lado, com os juízes federais brasileiros não há comparação possível. Bastará lembrar que cada um tem veículo distribuído, motorista e secretariado próprio e por si escolhido, para percebermos que estamos noutro continente! Não admira, pois, que em S. Paulo já haja transcrição simultânea como aqui ontem foi anunciado. Eu acrescento: em Brasília, dentro dos próprios tribunais há estúdios de televisão e rádio e o “TV Justiça”, um canal de televisão, transmite informação sobre a justiça 24 horas por dia.
Não sei qual a preferência de cada um dos presentes, nem é minha intenção apontar aqui para qualquer modelo. A verdade é que no regresso do meu estágio no estrangeiro não pude evitar que me viesse à memória a passagem de Alain Minc, no seu polémico livro “em Nome da Lei”: “onde o Estado é fraco, até mesmo corrupto, a pressão da sociedade conduziu a uma justiça independente mas corporativa, como em Itália; quando a democracia é triunfante e a moral pública sólida, o poder político gera uma magistratura cujos membros ninguém imaginaria que uma vez instalados não fossem independentes.”
As razões do meu inconformismo com o actual estado das coisas na Justiça portuguesa não são pequenas, mas o tempo é escasso e, por isso, elegi apenas dois tópicos, por se me afigurarem como especialmente justificadores da proposta que no final aqui gostaria de deixar. Ela traduz a minha visão das especiais exigências reservadas ao futuro do associativismo dos juízes. Poderão não obter a vossa concordância, ESTIMADOS COLEGAS, Senhores Conselheiros e Desembargadores ainda presentes, mas ao menos que obtenham a vossa DISCUSSÃO!
Em primeiro lugar, refiro-me à nossa passividade ao longo de anos perante a consciência de – não digo inúmeras, mas em qualquer caso excessivas - práticas não conformes à melhor garantia dos direitos dos cidadãos que proliferam pelos tribunais. Poderia exemplificar com os julgamentos no gabinete, as marcações de variadas diligências para a mesma hora e tantas outras práticas de todos conhecidas. Sempre pelas mais piedosas razões de permitir que o sistema funcione, mas igualmente em não menor erro sobre as nossas responsabilidades: fazer justiça, e não gerir o número de processos pendentes. Poderia também optar por outros temas mais complexos como o referente à construção da nossa jurisprudência já que é de cada vez mais difícil percebê-la no meio de decisões e contra-decisões que se negam a si mesmas!
Mas, porque nos últimos anos me dediquei exclusivamente à jurisdição da instrução criminal, deixem-me que melhor ilustre o que pretendo significar recorrendo a exemplos dessa área. A edição do jornal Público do último domingo trazia um artigo com um longo título: “PGR pede ao Governo alterações urgentes sobre segredo de justiça – reveladas novas escutas sobre substituição de Souto Moura. Alberto Costa avança que revisão do Código de Processo Penal será apresentada no início de 2006”. Nesse artigo, liam-se as seguintes palavras atribuídas ao primeiro-ministro: “O Governo não se ocupa de escutas telefónicas, porque essa é matéria das autoridades policiais” Ainda o mesmo artigo atribuía ao deputado do CDS Nuno Melo a seguinte “acusação”: “Uma polícia que escuta políticos por conversas de natureza política é uma polícia política e não uma polícia de investigação”. O “Expresso” do mesmo fim-de-semana revelava já a admiração dos políticos pela forma desabrida como em Portugal se avança para buscas.
Mas, qual é a surpresa? Não denunciaram já, e de há muito, vários juízes a falta de condições para cumprimento do controlo legal das intercepções telefónicas nos termos indicados pela lei? Porque razão continuam os terminais de intercepção na exclusiva disponibilidade da polícia se para a lei são os juízes os senhores das escutas? Ou será que, como se percebe pelas palavras dos nossos governantes e deputados, afinal para o poder político aquela é matéria das polícias, constituindo a reserva do juiz inscrita na lei apenas pura cosmética? Mas, se assim é, porque razão se admiram do estado policial que criaram e todos querem, apesar de tudo, manter? Nenhum juiz poderá com autoridade responder a esta questão, mas não nos podem negar o direito, eu diria o dever, de exigir de quem sabe a resposta que a revele de forma clara para que todos nós, portugueses, possamos compreender! Uma coisa é certa: não é mexendo, mais uma vez, nos códigos que se resolvem estas questões.
Entretanto, é tempo de os juízes de instrução deixarem de pactuar com a inoperância do sistema! No dia em que se libertarem da violentíssima pressão causada pela responsabilidade moral de, com o seu indeferimento, ficar por desvendar aquilo que para os investigadores - com a bênção sempre presente do MP - é mais uma vez o crime do século, nesse dia estou certa que encontrarão na própria polícia de investigação a primeira força de pressão para a alteração da actual situação. Resta saber em que sentido. Ora, sendo também neste campo que se joga a independência dos juízes e, com ela, a garantia dos direitos das pessoas, é também aqui que a associação tem um caminho a percorrer. Não chegam as vozes isoladas de alguns juízes. Em Paris, neste preciso momento, decorre o 39º congresso do Syndicat de la Magistrature. O apelo feito aos participantes tem a simplicidade da mobilização pelas grandes causas: “POUR LES LIBERTÉS”.
Como segundo exemplo do meu inconformismo elegi um aspecto da vida dos juízes exterior aos tribunais, mas nem por isso com menores reflexos negativos no prestígio e dignidade de toda a classe profissional. Deixem-me designá-lo como uma moda lamentável: a moda de juízes serem escolhidos (aceitarem ser escolhidos e, em especial, o CSM permitir que sejam escolhidos) para cargos de manifesta confiança política de quem os nomeia (e exonera).
A minha crítica não se dirige, naturalmente, aos próprios juízes alvo das referidas “nomeações”. Quantos deles conheço pessoalmente, muito prezo e tenho na conta de excelentes aplicadores do direito. Também por isso fazem mais falta nos tribunais! O que procuro denunciar são os efeitos que cada uma daquelas nomeações provoca na generalidade da população e que até hoje têm sido ignorados por nós todos enquanto associação dos juízes portugueses. Manifestam-se em duas vertentes que aqui referirei de forma breve, como o tempo exige.
Uma primeira, naturalmente, relacionada com a imparcialidade e independência do juiz e a imagem que desse juiz passa para o exterior e designadamente também para os cidadãos que um dia por ele serão julgados, pelo menos se voltar a julgar em 1ª instância quando cessar a comissão de serviço. Para mim é tão escandaloso que juízes possam encontrar-se em exercício de funções dependentes de confiança política, mesmo (ou especialmente) enquanto superintendem e dirigem serviços de polícia e depois voltarem a julgar matéria crime, que não percebo como pôde uma tal prática até hoje ter merecido de uma associação de juízes apenas o silêncio. Como será possível a opinião pública levar a sério a nossa defesa da independência dos tribunais se depois vê, com frequência, juízes serem nomeados e destituídos de cargos que nada têm de independentes - ainda que seja com o fito de passar uma tal imagem para o exterior que as instituições persistem em cativar juízes para aqueles lugares. Mas, se a minha sensibilidade vos parece excessiva, dêem uma espreitadela nos sites das associações dos juízes suíços ou austríacos e ficarão surpreendidos com o espaço ali reservado ao tema da imparcialidade do juiz. Não reside nela a essência da Justiça? Já em 1982 o TEDH negou a um tribunal belga o reconhecimento da sua imparcialidade por o respectivo presidente ter sido anteriormente, enquanto magistrado do MP, director do departamento onde correra o inquérito ainda que não tivesse tido qualquer intervenção no mesmo.
Há, porém, uma segunda vertente a considerar na aceitação de uma tal prática pela nossa classe profissional. E, se a primeira me preocupa como cidadã, a segunda preocupa-me especialmente como profissional: se um juiz aceita trocar a nobreza das suas funções de julgador e decisor do direito pela actividade administrativa, se aceita suspender a sua independência pela sujeição a orientações políticas dos governantes, seus superiores, - e são de cada vez mais aqueles que o fazem - é porque já não é mera insatisfação o que se detecta no exercício das funções judiciais. É frustração! E quando uma tal frustração se repete em múltiplos e BONS juízes é porque algo vai efectivamente muito mal nos tribunais. VAI MAL O GOSTO DE SER JUIZ e este deveria ser já um especial sinal de alerta para os nossos governantes. Por este andar, um dia destes ainda veremos juízes preferirem um qualquer lugar na Administração ao de Conselheiro no Supremo Tribunal de Justiça. E se permitirmos que assim seja, longe de nos aproximarmos, estaremos a afastarmo-nos da concretização das palavras do Presidente do STJ na abertura deste congresso. Lembram-se?: os juízes não estão e não querem estar acima da lei. Mas, enquanto titulares de órgãos de soberania só aceitam falar com os outros poderes de IGUAL PARA IGUAL.
Será que entre nós juízes ainda há quem acredite que a colocação nesses cargos, pela proximidade proporcionada com os governantes, nos confere maior poder? “Servir num gabinete ministerial é, para um magistrado, o sinal de um compromisso político, por vezes mais aparente que real, e desde há bastante tempo, é essa uma das vias de acesso mais rápidas aos lugares da hierarquia”, observou de há muito o magistrado François Colcombet. Que terrível equívoco sobre a natureza do poder!
É minha profunda convicção que são denúncias destas que os cidadãos esperam de nós. A nossa imparcialidade não deve confundir-se com indiferença. Como dizia o Presidente da ASJP, Desembargador Batista Coelho – “ quando na praça pública a Justiça é descredibilizada (…) quem sai a ganhar é quem não convive bem com um poder judicial forte e independente”.
Vou terminar:
Ao visitar as instalações, de uma dignidade sem par, do Supremo Tribunal Federal de Brasília, deparei com uma placa com a seguinte citação de um discurso proferido por Kubitschek: “A grandeza de uma nação repousa em sua ordem jurídica, de que a expressão mais alta é a aplicação do direito pelo sentimento de Justiça e a sabedoria dos seus magistrados.” O edifício situa-se mesmo em frente ao palácio do governo na Praça dos Três Poderes (ao centro situa-se o Parlamento com as suas duas Câmaras: Senado e Congresso). Quem a visita fica com uma certeza: o mentor daquela cidade acreditava na divisão dos três poderes e no equilíbrio entre eles.
Por cá, ao “Repensar o Poder Judicial” Paulo de Castro Rangel refere: a “nossa constituição judiciária vive (…) – um tanto esquizofrenicamente – (…) dois tempos, quando faz dos juízes verdadeiras reincarnações de Jano: com uma face voltada para o passado, simples funcionários qualificados; com a outra virada para o futuro, erigindo-os em autênticos titulares de órgãos de soberania. Uma primeira reforma – refere ainda o mesmo autor - deve visar justamente dar o golpe final na concepção do juiz-funcionário, com tudo o que isso implica (mesmo para «garantias» dos juízes como a liberdade de associação sindical ou um eventual direito à greve (…) É tempo, com efeito, de os juízes serem definitivamente assumidos – e se assumirem … - como titulares de órgãos de soberania.” – fim de citação
É minha opinião que existe pleno espaço em Portugal para a existência de associativismo entre os juízes. Não percamos, porém, a oportunidade de sermos nós, a Associação dos juízes portugueses, a dar o primeiro passo naquela assunção! O Presidente do STJ já o começou: cabe-nos a nós completá-lo. É isso que aqui proponho!
Maria de Fátima Mata-Mouros

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