ENTREVISTA AO JUIZ DESEMBARGADOR ANTÓNIO MARTINS, CANDIDATO A PRESIDENTE DA DIRECÇÃO DA ASSOCIAÇÃO SINDICAL DOS JUÍZES PORTUGUESES
Justiça e Democracia (JD) – Num período particularmente conturbado para a Justiça e para os Juízes quais as razões que o levaram a candidatar-se à direcção da A.S.J.P.?
António Martins (AM) – Basicamente duas razões: inconformismo com o actual estado de coisas e a convicção de que é possível fazer mais e melhor. Não me conformo com o estado de abandono a que foi votado o sistema judicial e com a falta de condições para um correcto funcionamento desse sistema, que possa dar resposta, e em tempo útil, aos direitos dos cidadãos. Não me conformo que os juízes trabalhando, em regra, muitas horas acima da média e sacrificando-se pessoal e familiarmente para fazer a melhor justiça possível, com os parcos meios e condições disponibilizadas, além de sobrecarregados de processos, sejam tão desconsiderados como o têm sido, nomeadamente pelo poder político, como aconteceu recentemente com a acusação, implícita, de que mais não éramos do que uns “calaceiros”.
Não me conformo que, não obstante tudo isto e muito mais, a reacção da Direcção da ASJP tenha sido a que foi: inábil, desgarrada, sem rumo definido e a reboque de outros actores. Penso que num momento particularmente delicado como o que os Juízes vivem neste momento, em que quase tudo em termos do seu estatuto sócio-profissional é colocado em causa, a reacção da Direcção da ASJP tem que ser muito firme, embora hábil, estrategicamente delineada na prossecução do objectivo de garantir aquele estatuto e sem andar a reboque de ninguém. Em resumo: é possível fazer mais e melhor.
JD – A recente greve dos Juízes que comentário lhe merece?
AM – Três comentários.
O primeiro prende-se com o facto de, infelizmente, a Direcção da ASJP não ter conseguido fazer passar a mensagem, essencial, da razão da greve e de não ter conseguido desmontar a estratégia governamental, que consistiu em colar-nos o rótulo de que a greve era por meras questões sindicais e que apenas pretendíamos garantir “privilégios”.
Como segundo comentário creio, no entanto, que a greve teve dois efeitos positivos: um consistiu na coesão dos juízes, demonstrada pela adesão maciça à greve. O outro foi o facto de ter sido a oportunidade de demonstrar tal coesão perante o poder político e, dessa forma, ter conseguido emperrar, por algum tempo, a cavalgada de ataque ao poder judicial que estava delineada.
Esse ataque irá continuar, como veremos, mas em ritmo diferente.
Infelizmente porém, e aqui entra o terceiro comentário, a Direcção da ASJP não preparou o dia seguinte à greve. Por falta de previsão não percebeu que a posição governamental de paragem no ataque ao poder judicial era apenas momentânea, aguardando a oportunidade adequada, que pelos vistos já se verifica, como se constata pela anunciada “carreira plana”. Por falta de estratégia ficou parada à espera de que as coisas acalmassem, parecendo esquecer e querer que se esquecesse o que tinha acontecido, como se isso fosse possível. Claro que desta forma a actual Direcção da ASJP vai continuar a reboque dos acontecimentos.
JD – Uma vez eleito Presidente da A.S.J.P. haverá uma estratégia definida para a intervenção dos Juízes nas reformas da Justiça?
AM – Não só haverá uma estratégia bem definida, como existirão objectivos a atingir com a mesma. A perspectiva não é bem a de que a melhor defesa é o ataque, mas anda perto disso. Ou seja, os juízes sabem muito bem o que é necessário para que o sistema judicial seja moderno, com realização da justiça de forma célere e acessível aos cidadãos.
Nessa medida, a atitude tem de ser a pró-actividade. Vamos elaborar e apresentar propostas em vários domínios, com vista a alcançar aqueles objectivos. Vamos ser mais visíveis, pelos motivos certos, e transmitir a mensagem adequada.
JD – Será possível envolver os Juízes na discussão pública das reformas?
AM – Não só tem que ser possível como não admitiremos que sejamos postos à margem dessa discussão, como vem ocorrendo actualmente. Veja-se o exemplo da Unidade de Missão para a Reforma do Direito Penal que não integra qualquer juiz.
Por isso referia atrás que a estratégia tem de ser a pró-actividade em vez da atitude passiva e de mera reacção, muitas vezes perante factos praticamente consumados.
Nas reformas necessárias ao sistema judicial é imprescindível que os juízes tenham uma palavra a dizer. Aliás, muitas dessas reformas devem partir da nossa iniciativa, apresentando projectos legislativos e pugnando por soluções que visem proporcionar, efectivamente, o direito à justiça.
JD – O estatuto sócio-profissional dos Juízes constitui ou não um dos requisitos essenciais para a salvaguarda da independência do Poder Judicial?
AM – Sem dúvida alguma.
É óbvio que se o juiz tiver um estatuto sócio-profissional degradado, sem condições adequadas de trabalho e com um nível remuneratório insuficiente, atentas as especiais exigências da função, está permeável na sua capacidade de ser independente.
E será caso para perguntar: a quem interessa um juiz assim?
Ao cidadão comum concerteza que não. Só poderá interessar a quem tiver condições económicas ou de exercício de poder capazes de usar aquela permeabilidade para a satisfação dos seus interesses particulares, que serão sempre em prejuízo dos interesses gerais da sociedade.
JD – Como perspectiva o quadro de vencimentos dos Juízes?
AM – Pese embora se possa considerar que o momento não é favorável a reivindicações de natureza salarial, face à actual crise económica, há que deixar claro que o actual quadro de vencimentos dos juízes se encontra abaixo do adequado para o nível e as exigências únicas e singulares da função. Tal situação é especialmente visível e sentida pelos colegas que estão nos primeiros anos da sua carreira, pois são dos mais afectados por esta degradação dos vencimentos dos juízes e dos mais penalizados pelas exigências da função, nomeadamente perante a envolvente social e económica, que é mais sentida e visível em comarcas de menor dimensão.
Também tenho a noção de que, realisticamente, nas actuais condições, não é fácil fazer passar aquela mensagem em termos do cidadão comum.
Porém, é aspecto que tem que ser discutido e equacionado com o poder político, nomeadamente pela demonstração de que os pressupostos com base nos quais foi perspectivado e fixado o quadro de vencimentos dos juízes, através da Lei 2/90, se encontra hoje completamente subvertido. Desde logo porque teve como pressuposto a posição dos juízes enquanto titulares de órgãos de soberania e uma determinada paridade com outros titulares de órgãos de soberania. A evolução posterior, na atribuição de uma série de regalias para estes outros titulares de órgãos de soberania, ficando os juízes amarrados a uma percentagem do vencimento do Presidente da República, constituiu uma forma ínvia de alterar aquela paridade. Depois porque havia naquele quadro de vencimentos um determinado escalonamento entre os vencimentos dos juízes, em função da antiguidade e colocação nos vários tribunais (1ª instância, relação e supremo) e hoje tal escalonamento é, nalguns casos, praticamente inexistente ou diminuto. Este facto leva a situações caricatas, de juízes colocados em tribunais de 1ª instância (nomeadamente nas ilhas) que preferem não ascender aos tribunais da relação por, na prática, irem perder dinheiro.
JD – E os serviços médicos de assistência aos Juízes e seus familiares?
AM – Foi inadmissível aquilo que o Governo fez, ao excluir os juízes de beneficiários dos SSMJ, ainda para mais com os argumentos que inicialmente invocou e que não têm qualquer sentido, face ao universo de beneficiários dos SSMJ agora definidos pelo DL 212/2005.Tenho a consciência de que nesta matéria será difícil uma regressão deste Governo, nem que mais não seja por uma questão de não querer perder a face e admitir que errou.
Porém creio que deve fazer parte das preocupações da futura direcção da ASJP demonstrar que os pressupostos que estão na base da decisão tomada por este executivo estão errados e bater-se, no futuro, se for caso disso, por uma alteração daquele diploma legal, de modo a voltar a incluir os juízes como beneficiários dos SSMJ. E digo se for caso disso, porque é necessário acompanhar em que termos é que vão evoluir os SSMJ, já que não é de excluir que a assistência médica a prestar através dos mesmos se venha a degradar de tal forma que deixe de ter interesse útil ser beneficiário desse regime.
Aliás, tenho dúvidas que o propósito final desta alteração legislativa não tenha sido afinal esse: levar à degradação total da assistência a prestar no âmbito dos SSMJ, o que conduzirá à sua extinção.
JD – O estatuto da Jubilação deverá manter-se tal qual está?
AM – Sem dúvida alguma. Caso sejamos eleitos para a Direcção da ASJP não abdicaremos da manutenção desse estatuto, nos termos actualmente consagrados. Aliás é preciso fazer notar que tal estatuto não é apenas um conjunto de direitos. Inclui a generalidade dos deveres que oneram os juízes em efectividade de funções e é precisamente em função desse conjunto, incindível, de direitos e deveres que deve ser considerado. E desengane-se o poder político de procurar, também aqui, tentar fazer passar a ideia de qualquer privilégio. Esse estatuto só era possível até agora, em regra, ao fim de 36 anos de duro serviço e/ou 65 anos de idade. No futuro, e embora com implementação progressiva, só será possível ao fim de 40 anos de serviço. Nada disto é nada comparável às reformas dos Srs. Deputados (durante muito tempo ao fim de 8 anos de mandato e actualmente 12 anos) ou de outros titulares de órgãos de soberania. Já para não falar dos famosos subsídios de integração que estes recebem quando terminam as suas funções de titulares de órgãos de soberania, às vezes exercidas durante poucos anos, quando não apenas durante alguns meses.
JD – Num quadro de alteração do mapa judiciário, que propostas entende deverem ser avançadas pelos Juízes?
AM – Há várias propostas que podem e devem ser feitas visando basicamente dois objectivos: que os tribunais se ocupem de questões que tenham dignidade para tal e não de pequenas bagatelas, cíveis, penais ou contra-ordenacionais; que a organização judiciária corresponda às necessidades da realidade social e económica do pais e não seja apenas a manutenção de situações herdadas do passado, mas desfasadas da realidade actual, ou a mera satisfação de interesses políticos. Assim, tem que ser revisto o enquadramento dos julgados de paz, integrando-os no sistema judicial, bem como redefinidas as suas competências, de modo a que se possam ocupar daquelas bagatelas.
A comarca deve ter por base a realidade social e económica e não como pressuposto o mapa administrativo. Qualquer presidente de câmara deste país opor-se-á a que o “seu” concelho perca o tribunal aí instalado. Mas nalguns casos, em função do movimento processual, não tem sentido a manutenção desse tribunal. Claro que compreendo a necessidade de se tomarem em consideração algumas especificidades, como o caso das ilhas e das regiões interiores. Mas mesmo nestas situações impõe-se solução diferente da actual, que não passe pela agregação de comarcas, pois isso representa sacrifícios para o juiz, sem qualquer compensação pelos mesmos. Admito que a solução para essas especificidades possa ser a acumulação de funções, pois dessa forma poderão ser compensados aqueles sacrifícios.
Tendencialmente devemos compatibilizar as comarcas com a especialização, pois só tem sentido a competência genérica aonde não for viável, por razões geográficas e número de processos insuficiente, a implementação de juízos especializados.
É fundamental a criação de juízos de instrução criminal em todos os círculos judiciais. Como sabemos tem sido a prática do CSM, ao colocar juízes com funções de instrução criminal além do quadro, o que tem suprido a falta de previsão (para não dizer incapacidade) do poder legislativo que, na actual Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais só os previu para as cidades de Lisboa, Porto e Coimbra. Importa igualmente criar o Tribunal Central Criminal, ajustado aos julgamentos dos chamados “mega-processos”.
JD – E a contingentação? Como será a mesma defendida por si?
AM –A contingentação é um ponto de honra desta candidatura à Direcção da ASJP. Ando há mais de vinte anos nos tribunais e sempre ouvi falar da contingentação, nomeadamente quando se avizinham estes actos eleitorais. Aliás basta olhar para o programa eleitoral que há três anos atrás a actual Direcção da ASJP então apresentou aos colegas. Porém, a seguir à proclamação das vitórias eleitorais é tema que desaparece das preocupações das Direcções eleitas, como aconteceu com a actual Direcção. Aliás, por vezes, até se tem a ideia que é assunto tabu ou a endossar para outros, como aconteceu na última Assembleia Geral, com o actual Presidente da Direcção a pretender passar a questão para o CSM. Ora, quero aqui afirmar que a contingentação será uma realidade a implementar no nosso mandato caso sejamos eleitos para a Direcção da ASJP. Os termos e a forma de implementação dessa contingentação serão objecto de proposta da Direcção da ASJP a apresentar à Assembleia Geral, proposta essa que me comprometo a apresentar no prazo máximo de um ano, e será a vontade dos associados aí manifestada que decidirá soberanamente.
Aliás não é preciso alertar os juízes que esta questão da contingentação ganha uma actualidade premente, perante os termos em que o poder politico projecta a questão da responsabilidade civil face aos atrasos na realização da justiça. E não se trata, da nossa parte, de negar toda e qualquer possibilidade de responsabilidade. Aceitamos discutir a questão, precisamente porque os juízes são pessoas responsáveis. O que não podemos aceitar é que o juiz possa ser responsabilizado e penalizado se tiver a si afecta uma pendência processual inumana. Aí a responsabilidade é do Estado, nomeadamente do poder político e/ou legislativo, que não possibilita realizar Justiça em tempo útil e, então, esse mesmo poder politico e/ou legislativo é que tem de ser responsabilizado.
JD – Os assessores judiciais poderão constituir uma ferramenta fundamental para a modernização da Justiça?
AM – Poderiam e eu utilizo esta forma verbal para fazer notar que é mais uma das matérias em que o poder político e legislativo não tem um rumo ou orientação.
Primeiro criaram a figura dos assessores judiciais, através da Lei 2/98. Depois a figura dos assistentes judiciais, pelo DL 330/2001.
Entretanto deixaram cair os assessores, ou melhor, extinguiram-nos na prática para os Tribunais da Relação e tribunais de 1ª instância, apenas os mantendo para o STJ e aqui porque o seu universo de recrutamento é entre juízes de 1ª instância. É de relembrar que aquela extinção prática ocorreu com a criação de um curso especial de acesso ao CEJ para permitir que os assessores então em funções nos tribunais de 1ª instância, oriundos do único curso de assessores judiciais que foi realizado, fossem integrados nas magistraturas.
Quanto aos assistentes judiciais, bem poderíamos dizer que estamos perante um nado-morto, já que nunca viram a luz do dia. Com efeito, nunca foi publicada a portaria prevista naquele DL 330/2001, da responsabilidade dos Ministros da Justiça, das Finanças e da Reforma do Estado e da Administração Pública fixando o número de assistentes judiciais cuja contratação seria autorizada. Mas é claro que os assessores, tal como o secretariado, integrados no gabinete do juiz, poderão constituir um instrumento fundamental para criar condições de que o juiz faça apenas a sua função: julgar. E não que seja, como hoje é, uma mulher ou homem de sete ofícios: dactilógrafo desde logo para escrever as suas decisões; operador de informática para scanear peças processuais, de modo a ganhar algum tempo ao não ter que as dactilografar nas suas sentenças/acórdãos; corrector de actas, quando não elaborador das mesmas, face à escassa ou nula formação com que os Srs. Oficiais de Justiça são colocados a trabalhar nos tribunais e à não possibilidade de designar os mais capazes para a realização das diligências, máxime os julgamentos; elaborador de relatórios, como parte da peça decisória, que procuram condensar o que de relevante ocorreu ao longo dos autos; pesquisador de jurisprudência, doutrina e legislação e, muitas vezes, face à inexistência de biblioteca adequada nos tribunais, obrigando a deslocações a bibliotecas que possibilitem tais pesquisas.
Claro que isto só tem sido possível porque o poder politico ainda não percebeu que se o juiz for colocado só a julgar, libertando-o daquelas funções e até de outras, como o despacho de mero expediente, as quais podem ser efectivamente realizadas por secretariado e assessorias, ganhará em muito em termos de modernização do sistema de justiça e de produtividade.
JD – Fala-se também na desmaterialização dos processos. Será esse o caminho para a celeridade?
AM –Do que tenho ouvido falar até ao momento sobre essa questão, e não tem sido muito, pois ainda não vi explicado e concretizado o que seja tal desmaterialização, nomeadamente se é uma cópia do modelo que está a ser implementado nos Tribunais Administrativos e Fiscais ou se é apenas uma “desmaterialização dos recursos”, como já se ouviu falar, apenas uma imagem me ocorre para definir a atitude do Sr. Ministro da Justiça: folclore … com todo o respeito por esta dança popular portuguesa. Ou seja, não sei se estão a divertir-nos, mas seguramente estão a entreter-nos.
É óbvio para quem cá anda nos tribunais, que pelos vistos não será o caso do Sr. Ministro, que a desmaterialização não será a panaceia que por aí se anuncia. Aliás basta atentar no que está acontecendo naqueles Tribunais Administrativos e Fiscais para nos questionarmos se a panaceia não matará o doente em vez de o curar. As sentenças não se elaboram primindo a tecla Enter. A informática pode ser um instrumento de celeridade, mas quando é o próprio juiz a ter que ser a pessoa que processa os seus textos e a ter que fazer o scaner de textos que necessita de aproveitar, estamos conversados quanto aos termos em que se pretende que a informática possa ser útil.
Por outro lado, há que repensar em que termos é que o domínio da informática dos tribunais, nomeadamente em termos de acesso através dos servidores, deve estar na Administração ou noutras entidades (eventualmente os Conselhos Superiores das Magistraturas). É que as recentes notícias da possibilidade de fugas de informação e de violações de segredo de justiça terem origem na falta de segurança do sistema informático instalado pelo Ministério da Justiça nos tribunais, o Habilus, têm que ser devidamente esclarecidas.
Para daí se tirarem as necessárias consequências. Até porque a defesa dos direitos, liberdades e garantias não podem ser apenas palavras vãs ou a usar conforme dê jeito em determinada situação.
Ainda voltando à desmaterialização, neste momento quem estará contente com a mesma, mais do que as pessoas que trabalham nos tribunais, que ainda hoje não lhes foi devidamente explicado o que ela virá a ser, serão as empresas vendedoras de material informático.
E é precisamente aqui, na relação custos/benefícios, que se coloca o problema. Sabemos que o caminho para a celeridade não é este da desmaterialização. O dinheiro, que o poder politico enche tanto a boca como sendo dos contribuintes e que por isso teria de ser bem aplicado, seria concerteza melhor empregue se fosse utilizado naquela perspectiva que já referi, criação de secretariado e assessoria para o juiz poder fazer apenas a sua função: julgar.
JD – O acesso aos Tribunais da Relação e ao Supremo Tribunal de Justiça deverá deixar de constituir um dos horizontes profissionais dos Juízes? Por outras palavras, o que pensa da chamada “carreira plana”?
AM – Nos termos em que foi anunciada a chamada “carreira plana”, não tenho dúvidas nenhumas de que se trata de um autêntico golpe de estado constitucional.
Será a quebra da tradicional separação de poderes, legislativo, executivo e judicial que é uma garantia do estado de direito democrático, da independência do poder judicial e da defesa dos direitos, liberdades e garantias do cidadão.
Na verdade, com tal medida estarão criadas as condições para que o poder político invada o poder judicial e quebre a sua unidade, enquanto corpo de magistratura único e independente.
Acrescerá que dessa forma os juízes de 1ª instância serão deslegitimados e desqualificados.
Deslegitimados desde logo porque podendo as suas decisões ser objecto de apreciação por quem não teve qualquer experiência anterior de julgar, nem de julgamentos, nomeadamente na 2ª instância em termos de reapreciação das decisões sobre matéria de facto, aquilo que é um dos pressupostos da arte de julgar, a experiência adquirida e sedimentada, deixa de poder servir de legitimação para as decisões judiciais de 1ª instância.
Mas serão também desqualificados, até porque no futuro não ingressarão na carreira de juízes aquele nível técnico e cientifico de pessoas que hoje ingressam. Quem virá para uma carreira profissional que não lhe dá qualquer longos e vários anos, passar de uma comarca de 1º acesso (muitas vezes em regiões geográficas desfavorecidas e sem as condições adequadas de instalação de família e criação de filhos) para uma comarca de acesso final?
Por tudo isto, e muito mais se poderia dizer - e seguramente dirá -, tal projecto de “carreira plana” terá a firme e tenaz oposição da Direcção da ASJP, caso sejamos eleitos.
JD – O que pensa da especialização do juiz?
AM – Deve tender-se o mais possível para essa especialização, aliás de acordo com uma organização judiciária que a favoreça, como acima referi.
Creio que tal se impõe desde logo porque o Direito é, cada vez mais, um universo dificilmente abarcável, com total profundidade e qualidade. Por isso é adequado que o juiz, que deve conhecer com profundidade as questões submetidas à sua decisão e deve decidir com qualidade, seja cada vez mais um especialista, do cível, do penal, do laboral, do administrativo, do fiscal, dos menores e família, etc.
Depois tal opção também é defensável em função do facto de a especialização levar a níveis de eficácia e produtividade muito superiores em relação às comarcas de competência genérica em que se abrange uma pluralidade de ramos do direito.
JD – O acesso aos Tribunais superiores deve ou não contemplar a especialização?
AM – Creio que sim, sendo válidas as razões atrás delineadas.
Agora o que não tem sentido é o que vem acontecendo actualmente em que a colocação nas diversas secções nos tribunais superiores leva a situações em que juízes que fizeram praticamente toda a sua carreira na 1ª instância numa jurisdição (cível, crime ou laboral) são depois colocados na 2ª instância noutra jurisdição. E não têm forma de evitar isso porque quando concorrem aos tribunais superiores até desconhecem em que secção é que existirão vagas.
JD – E quanto à formação dos Juízes? Deve manter-se a formação conjunta com os candidatos ao Ministério Público?
AM – Não há razões válidas para manter tal formação conjunta, pois ambas as magistraturas e, principalmente os utentes da justiça, só tem a perder com a formação nos termos em que está delineada. Actualmente ainda pior do que no passado, pois tal formação conjunta está prolongada à segunda fase da formação, a fase de iniciação como sabemos, o que dá lugar a situações caricatas. Auditores que fazem os primeiros seis meses dessa formação na magistratura judicial, os seis meses seguintes na magistratura do Ministério Público e, depois, optando pela judicatura, vão iniciar funções como juiz em regime de pré-afectação (com responsabilidade própria) sem estarem em contacto com a formação de juiz há mais de sete meses e meio (entretanto ocorreram as férias judiciais). Se não for possível a formação em escolas separadas, o que seria o ideal como aliás acontece em Espanha, então é necessário que se parta para uma formação dos juízes e dos magistrados do Ministério Público com completa autonomia dos cursos de formação, ab initio, sendo estes direccionados para as funções especificas de cada uma das magistraturas.
Aliás, um exemplo provado do erro deste tipo de formação, além do que acima já referi e agora voltado para a vertente do Mº Pº, está no facto de ele não potenciar devidamente a investigação criminal, nomeadamente por não dar formação especifica e aprofundada nessa área aos candidatos ao Mº Pº (o que se crê só ser possível com cursos separados) e também por descurar absolutamente a formação quer ao nível da direcção do inquérito quer ao nível da direcção funcional das policias por parte do Mº Pº.
Depois não é de admirar que, conjugando isso com outros factores, entre eles um processo penal inadequado, tenhamos os resultados que temos na investigação criminal.
JD – Num quadro de discussão da modernização da Justiça qual o papel do
Ministério Público?
AM – O papel do Ministério Público, numa Justiça modernizada, afigura-se-me que não tem sentido ter a amplitude que hoje lhe é conferida, nomeadamente em domínios de representação do Estado, Regiões Autónomas e autarquias locais, quando estejam em causa matérias que não tem a ver com o núcleo essencial da actividade estadual em termos de interesse público. Esse papel é aliás pouco compatível com a autonomia do próprio Mº Pº e cai-se depois em situações pouco abonatórias, como aconteceu no caso Aqua Parque, com instruções dum Ministro (Dr. António Costa) ao Mº Pº para recorrer da decisão judicial de 1ª instância e depois outro Ministro (Dr.ª Celeste Cardona) a fazer um acordo por transacção.
Aquele papel, numa Justiça moderna, deve restringir-se ao essencial, nomeadamente direcção da investigação criminal e exercício da acção penal, com celeridade e níveis de eficácia elevados.
JD – Concorda com os defensores oficiosos avençados?
AM – Não se me afigura que seja a melhor solução. Embora pior do que a actual não seja fácil, o que não significa impossível, pois este Ministro da Justiça já nos habituou às maiores faltas de sensatez. E bem pode vir a ser pior, se não houver transparência e fiscalização na forma como serão feitas essas avenças. Será que mais uma vez serão dois ou três grandes escritórios de advogados a contratar com o Estado (e eventualmente a subcontratar na província)? Veremos.
Ponto importante é que tem de encontrar-se uma solução, melhor que o actual sistema, para a resolução dum problema que é tarefa indiscutível dum Estado de Direito: assegurar que todo o cidadão, que não tenha possibilidades económicas, tem direito a uma defesa eficaz, visando acautelar e salvaguardar os seus direitos, liberdades e garantias.
Creio, porém, como aliás já tive oportunidade de defender em artigo publicado no livro Interrogações à Justiça, que a melhor solução para aquele problema e com menores custos, será através da institucionalização da figura do defensor público, desde que sejam acautelados alguns dos vícios que a criação de tal figura poderá originar, como potencialmente pode acontecer com todas as instituições.
JD – Os recursos para os Tribunais superiores deverão estar ao alcance de todo e qualquer advogado?
AM – Tenho por seguro que não. A Ordem dos Advogados tem de assumir, até para defesa do prestígio da advocacia, que o recurso para os tribunais superiores tem de ser restrito a advogados que, reconhecidamente (pela Ordem dos Advogados), tenham qualidade técnica para o exercício da advocacia nesses tribunais.
Não tem sentido que a Ordem dos Advogados emita uma cédula profissional a alguém que fez um estágio de dois anos atribuindo-lhe capacidade para, no dia seguinte, poder subscrever peças processuais e recursos dirigidos a qualquer tribunal, incluindo o Supremo Tribunal de Justiça.
Ainda recentemente me contaram duas situações, ocorridas neste Tribunal, que são o retrato caricatural do actual sistema.
Numa delas, a ilustre advogada, nas alegações orais realizadas naquele tribunal, sistematicamente apelidou o tribunal “a quo” de tribunal “a cú” – clara ignorância da forma de pronunciar a expressão latina e do seu sentido – o que levou o Juiz Conselheiro que presidia à sessão, terminada esta, a tranquilizar um dos Juízes Conselheiros adjuntos, recentemente aí em exercício de funções, dizendo-lhe ironicamente que nem todas as sessões eram assim pornográficas.
Na outra situação a Exmª Advogada depois de tecer várias referências e insistências sobre a valoração da prova produzida no julgamento em 1ª instância, teve de ser advertida para o teor da lei: o Supremo Tribunal de Justiça não podia conhecer de matéria de facto, salvo raras excepções, não se enquadrando nestas as alegações que estava a produzir.
JD – Como será possível pensar uma reforma global para a justiça sem meios económicos para o fazer?
AM – Claro que sem ovos não é possível fazer omeletes. Mas aí o Estado tem de assumir aquilo que nunca assumiu até ao momento, ou seja, que tem posto a funcionar um sistema de justiça com escassos recursos económicos e, ainda por cima, os disponibilizados têm sido mal direccionados.
No entanto também se me afigura adequado esclarecer que, se houver propósitos claros no que se pretende e tais propósitos forem sérios, há muitas reformas que não dependem de meios económicos.
Agora o que não será possível é realizar uma reforma da justiça que não valorize o, em regra, excelente capital humano constituído pelos profissionais que exercem funções no sistema de justiça, máxime os juízes. E muito menos será possível levá-la a cabo se tais profissionais forem desconsiderados e caluniados, como o têm sido pelo actual executivo.
JD – A manter-se a situação de autismo profundo por parte do Governo, não ouvindo os Juízes e não encarando com seriedade as reformas necessárias para a justiça, como será possível aos Juízes defenderem a sua independência?
AM – Fazendo ouvir bem alto a sua voz e usando de toda a imaginação para isso. E quando digo “bem alto” não digo aos berros. Pretendo dizer que os juízes devem ter uma intervenção intensa e profunda, quer no dia a dia do exercício das suas funções, quer na dita sociedade civil e mesmo na “agenda política”.Desde logo intervindo, com um nível de excelência, no desempenho corrente das suas funções, no dia-a-dia. Um juiz que, pelo exercício brioso, correcto e de grande profissionalismo das suas funções, ganhe o respeito e admiração dos seus concidadãos e dos profissionais do foro que com ele tenham contacto, é um juiz que será escutado e compreendido ao intervir, quando for caso disso e sempre que disso for caso, dando conta das parcas e deficientes condições em que tem de exercer as suas funções e da forma como elas poderiam ser exercidas de forma mais proveitosa para a sociedade.
Mas também intervindo na sociedade civil, nomeadamente através da ASJP que, em parceria com as Universidades, poderá organizar colóquios temáticos sobre as questões da justiça e as reformas necessárias, apresentando propostas de solução para essas questões. É exemplo concreto a questão da reforma da acção executiva, apresentada pelos últimos quatro ministros da Justiça como o “ovo de Colombo” para conseguir a almejada diminuição da pendência processual e que, neste momento, bem pode ser considerada, para qualquer cidadão que seja credor e pretenda ver acautelado o seu direito através do processo executivo, como “o calvário da cruz” e, para o juiz, como a garantia de que os seus dias não mais serão monótonos. Com efeito, os credores dificilmente conseguem obter o seu crédito e nunca sem um longo calvário, e os juízes viram triplicada (pelo menos) a sua intervenção processual nos processos executivos, tal é o emaranhado da legislação e a pouca preparação dos solicitadores para a execução das funções que o legislador lhe atribuiu.
Há outros domínios em que os juízes e a sua associação sindical têm de conseguir fazer ouvir a sua voz, de modo a que ela chegue aos seus concidadãos e à classe politica.
Um deles respeita à imprensa, impondo-se alterar a relação distante que a actual Direcção da ASJP tem mantido. Creio que a aproximação com a comunicação social, embora sem qualquer promiscuidade, permitir-nos-á, por um lado desmistificar alguns “fazedores de opinião” que por aí pululam e, por outro, transmitir a mensagem correcta do juiz enquanto pessoa especialmente preocupada em fazer justiça, mas cuja acção é balizada por um determinado quadro legal e por um concreto contexto em termos de condições de trabalho, nomeadamente de sobrecarga processual que lhe está afecta.
Outro domínio onde é preciso fazermo-nos ouvir é ao nível dos representantes do povo, em termos legislativos, os Srs. Deputados. É necessário que, principalmente os Srs. Deputados que integram os partidos da oposição, saibam o que pensam os juízes sobre as reformas necessárias para a justiça, o perigo concreto para o Estado de Direito que decorrerá da existência de juízes sem independência e quais as propostas concretas que temos de forma a lograr atingir o objectivo de uma justiça que acautele os direitos, as liberdades e as garantias, num tempo adequado.
JD – E a nível interno, não é necessário que os juízes debatam mais intensa e profundamente, não só as questões que os afectam enquanto classe profissional, mas também o sistema de justiça na sua globalidade, com vista a melhorá-lo?
AM – Estou inteiramente de acordo.
Aliás as próximas eleições para os vários órgãos da ASJP poderiam e deveriam ser um momento privilegiado para esse debate.
Aproveito para lançar aqui um desafio no sentido de, pelo menos ao nível dos candidatos a Presidente da Direcção (e não é de excluir que sejam abrangidos outros candidatos a outros cargos), se façam debates em vários pontos do país, podendo as Direcções Regionais da ASJP ser um bom palco para o efeito. Tais debates permitiriam o aprofundamento da discussão interna e possibilitariam a todos os associados um conhecimento mais profundo dos candidatos e das suas capacidades, bem como questioná-los directamente sobre as propostas apresentadas nos programas eleitorais e outras questões que fossem do interesse dos juízes.
É que a experiência vem demonstrando que as reuniões, contactos, almoços e outro tipo de eventos organizados pelas diferentes listas concorrentes aos órgãos da ASJP, para dar a conhecer aos colegas as suas propostas, acabam por ser muito restritos. Em regra só comparece a tais eventos quem já está convencido das propostas e dos candidatos dessa lista. Haverá concerteza várias razões para que isso suceda, a que não serão alheias as simpatias e amizades que se foram criando e que, depois, não se quer dar a ideia de estarem a ser “atraiçoadas”, comparecendo a um evento organizado pelos elementos da lista concorrente. Ora aqueles debates possibilitariam, não só que os colegas comparecessem sem aqueles sentimentos de culpa, como permitiriam um melhor conhecimento dos candidatos e das suas propostas, quiçá desfazendo-se assim alguns preconceitos e pré-juízos que possam existir. Ganharíamos todos pelo aprofundamento do debate interno e ganharia o sentido democrático que qualquer votação encerra, já que um voto mais esclarecido é sempre um voto melhor.
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