Wednesday, March 15

FALAR OU NÃO FALAR
CALAR OU NÃO CALAR

"Assola o país uma pulsão coloquial que põe toda a gente em estado frenético de tagarelice, numa multiplicação ansiosa de duos, trios, ensembles, coros.
Desde os píncaros de Castro Laboreiro ao Ilhéu de Moçambique fervem rumorejos, conversas vozeios, brados que abafam e escamoteiam a paciência de alguns, os vagares de muitos e o bom senso de todos. O falatório é causa de inúmeros despautérios, frouxas produtividades e más-criações.
Fala-se, fala-se, fala-se, em todos os sotaques, em todos os tons e decibéis, em todos os azimutes. O país fala, fala, desunha-se a falar, e pouco do que diz tem o menor interesse. O país não tem nada a dizer, a ensinar, a comunicar. O país quer é aturdir-se. E a tagarelice é o meio de aturdimento mais à mão. Falam os médicos, os notários, os empreiteiros, os varredores, os motoristas, os professores e toda a lista de profissões da estatística e não há corporação que fique de fora neste zunzunar do paleio, vendedores de automóveis, mediadores de seguros, sapateiros que passam a vida a cantar, empregados de mesa, agentes da autoridade, doentes dos hospitais, operadores imobiliários, empregados forenses, e também engenheiros, sem-abrigo, vagabundos, telefonistas, padeiros, patinadores, engraxadores e vândalos.
Imigrantes provindos de países sombrios aprendem aqui a soltar as línguas, aderem ao ofício de dar à taramela, por isto e por aquilo, por tudo e por nada. Passam-se dias, meses, anos, remoem as depressões, adejam os perigos e o país a falajar, falajar, falajar" (Mário de Carvalho, Fantasia Para Dois Coronéis e Uma Piscina, Caminho, 2ª edição, 2004, pags. 11 e 12).
Caricaturalmente esta é a situação que vivemos em Portugal, mas, e os juízes, como enquadrá-los neste contexto.
À tendência natural e tradicional de não falar, junta-se - todavia - uma muitas vezes confessada insatisfação por, por um lado, surgirem poucas vozes a dizer o que os juízes pensam, e por outro, as que surgem, nem sempre lograrem transmitir ideias e mensagens interessantes para os cidadãos (e que contribuam para a sua confiança e respeito pela autoridade do poder judicial), sendo certo que, pela experiência por si vivida, está nas suas mãos a possibilidade de dar inestimáveis contributos para o aperfeiçoamento e melhoria do sistema (porque a condução e a decisão final dos processos passa por si, e, portanto, têm a noção global e concreta das consequências da aplicação da Lei) : "Ninguém garante, até pode acontecer o contrário, que os magistrados tenham as ideias mais correctas sobre o que "devem" ser as leis. Podem até e, naturalmente, sofrem "erros de paralaxe", por estarem "demasiado" mergulhados na realidade judiciária. Mas é importante ouvir o seu contributo. Fortalece a democracia em vez de a "anestesiar" – Francisco Teixeira da Mota, A palavra dos magistrados, in Escrever Direito, Público, 23/05/1993).
Mas a solução não me parece que deva ser o silêncio.
Não me parece que seja correcto desencorajar pessoas a falar, ou a participar no debate público de questões relevantes, bem pelo contrário (o essencial é que haja algo de útil e consistente para dizer, uma mensagem para transmitir).
E as intervenções dos juízes não têm também de surgir apenas no âmbito duma Associação Sindical (a que existe ou outra, porque também era tempo de acabar com esse tabu).
Não devem ficar-se por aí, isto apesar da enorme capacidade de intervenção no exterior que daí resulta (capital este que tem sido desaproveitado e mesmo por vezes malbaratado, sendo certo que mais uma vez volta a ser possível, dar a oportunidade a quem pode fazer diferente, para melhor). E é para o exterior que os focos devem estar virados : não para dentro, para os juízes - porque isso acaba por enfraquecê-los - mas para fora, para os cidadãos, porque eles podem ser os nossos melhores aliados (desde logo por serem os principais beneficiários de actividade jurisdicional desenvolvida com condições e com meios adequados).
Os juízes não podem estar confinados numa redoma que não só não os protege como não os defende, têm é de aparecer (enquadrados ou não), mas com discursos consistentes, credíveis e respeitados (pondo de lado as pequenas vaidades pessoais dos que querem aparecer e dos que querem evitar que outros apareçam...).
O que se deve pretender é a existência de juízes que não sejam amorfos, funcionarizados e cinzentos (mas a intensidade cromática do verde eléctrico fluorescente, também é de evitar), que sejam conscienciosos, responsáveis, ponderados e sensatos, sem deixarem de ser trabalhadores, empenhados, interessados e preocupados, não só na resolução dos litígios que lhes cabe resolver, mas também na melhoria e aperfeiçoamento do sistema em que se inserem.
No panorama comunicacional em que nos movemos e ao qual não podemos escapar (porque existe no mundo real), estamos em pleno processo de recíproca aprendizagem e compreensão dos mecanismos de funcionamento do mundo judicial e do mundo da comunicação, necessário é que se tenha a consciência de que os juízes sendo cidadãos como quaisquer outros, têm responsabilidades especiais (com convicções, com opiniões, sobre o Direito, sobre a Política, sobre Desporto, sobre a sociedade).
E elas têm de ser assumidas: sendo conhecida a sua actividade, um juiz que fale fora do exercício das suas funções, dificilmente pode dizer-se que fala apenas o cidadão, pois mesmo que a intervenção seja a título pessoal, sendo conhecida a profissão, a actividade do opinante, a sua exposição passa a ser diferente, pois não só está a usar o meio de comunicação, passa também a ser usado por ele ("O circo mediático que nos cerca, nos seca, atingiu o pico do voyeurismo. [...] Excitar é a nova função que se exige (depois da de produzir e de consumir) ao ser humano para ser ficcionado - maneira de ganhar existência nos nossos delirantes, coleantes imaginários" - Fernando Dacosta, A volúpia, Visão, 13 de Fevereiro de 2003, pag. 130).
Dizia António Gala que um "toureiro não representa o conjunto dos toureiros, (...) como um escritor não representa a literatura; mas um juiz, sim, representa o poder judicial" (citado por Alberto Sousa Lamy, Advogados e Juízes na Literatura e na Sabedoria Popular, Volume 2, Ordem dos Advogados, 2001, pag. 170), isto, talvez "porque, inconscientemente, a sociedade pense que a justiça constitui um mundo à parte, de que os juízes são ao mesmo tempo a figura visível e a expressão mágica que assume em nosso nome a responsabilidade de julgar.
Tudo se passa para a imensa maioria como se só houvesse justiça porque há juízes" (Eduardo Lourenço, O Tempo da Justiça, in O Explendor do Caos, Gradiva, 3ª edição, 1999, pag. 84).
De facto, não "se trata de separar o juiz da sociedade na que deve estar integrado, mas sim de reconhecer que o cidadão comum entende qualquer opinião do cidadão juiz, como própria deste e não daquele .(...) O cidadão juiz tem limitada a sua liberdade de expressão e de comunicação em vista da consecução do interesse geral que supõe a obtenção do respeito do cidadão e a crença deste na imparcialidade e recto proceder do juiz na aplicação das leis" (Santiago Martínez-Vares Garcia, Estatuto Judicial y Límites a la Libertad de Expresión e Opinión de los Jueces, Revista del Poder Judicial, Número Especial XVII, Justicia, Información y Opinión Pública, I Encuentro Jueces-Periodistas, Noviembre 1999, pag. 378).
Importa procurar o ponto de equilíbrio entre as necessidades do mundo da comunicação e as do mundo judicial e ele só será logrado quando for possível encarar com alguma normalidade a presença de um juiz a falar dos problemas da justiça num órgão de comunicação social e quando o seu discurso se mantenha dentro de um determinado paradigma de prudência, serenidade, racionalidade, equilíbrio e contenção.
Convém, em todo o caso relembrar e nunca esquecer, no que respeita a intervenções ou opiniões sobre concretos processos, os juízes apenas o podem fazer no condicionalismo restritivo do art. 12º, do EMJ (nº 1 – "Os magistrados judiciais não podem fazer declarações ou comentários sobre processos, salvo, quando autorizadas pelo Conselho Superior da Magistratura, para defesa da honra ou para a realização de outro interesse legítimo" ; nº 2 – "Não são abrangidas pelo dever de reserva as informações que, em matéria não coberta pelo segredo de justiça ou pelo sigilo profissional, visem a realização de direitos ou interesses legítimos, nomeadamente de acesso à informação").
Aí sim, são declarações desaconselháveis e a evitar: um juiz não discute na praça pública as decisões concretas de colegas seus e muito menos as suas (a perturbação e confusão que tal provoca nos cidadãos é, no mínimo, descredibilizadora e geradora de desconfiança : "A justiça repousa não só na racionalidade do sistema e no formalismo das leis, mas também em algo de mais difuso e menos objectivo : a confiança" - António Barreto, na obra colectiva "Interrogações à Justiça", Tenacitas, 2003, pag. 21) .
Não "é realista imaginar que só a racionalidade rege as condutas em sociedade. Mas já é mais possível, pela contenção e pelo recato dos juízes, por um lado, mas também, por outro, dos acusadores e dos defensores, assim como dos políticos e dos funcionários judiciais e até dos professores universitários, que as emoções não tenham como fonte e autor justamente os que, profissional ou funcionalmente, deveriam zelar pela frieza e pela insensibilidade do processo judicial . Sempre houve emoções com a justiça, sempre e cada vez mais as haverá (...). Mas tudo deve ser feito para que os protagonistas e profissionais da justiça delas se abstenham, ao menos em público : tanto quanto moral, é uma exigência profissional . Que gera a confiança da população" (António Barreto, ob. loc. cit.).
Falar em abstracto sobre as questões poderá ser uma defesa, mas nem sempre é possível, ou nem sempre funcionará, quer pela voracidade dos media, quer porque o tema em abstracto poderá ser induzido com alguma facilidade a fazer-se corresponder à situação concreta que está em causa num qualquer processo mediatizado: nesta circunstância não falar pode mesmo ser a melhor opção, a não ser que se tenha a arte de lograr evitar as dificuldades assinaladas.
Relevante em todos os casos é a necessidade de se ter a consciência de que não se pode falar na televisão ou dizer nos órgãos de comunicação social, o mesmo que se fala ou diz em casa com e para os amigos, ou numa mesa de café com colegas: as exigências são distintas, o público é diferente, o grau de perigosidade é incomparável .
O que num lado é encarável como um simples exercício de crítica, ou um inconsistente desabafo (ou mesmo um saudável maldizer), no outro, passa a ser notícia e tratado como tal : quando se fala para um órgão de comunicação social (mormente para a televisão, pelo seu impacto) é preciso ter cuidado com o que se diz e como se diz, é essencial o rigor na escolha das palavras (e um juiz tem de ter consciência que tudo o que vai dizer será escrutinado ao pormenor).
A intervenção pública de um juiz passa, assim, por três palavras, reserva, prudência e equilíbrio.
Passa ainda pela gestão do seu discurso, bem preparado, cauteloso, moderado.
Passa pelo evitar a precipitação do discurso irreflectido e/ou incendiário, ou do aumento da emotividade da situação.
Passa pelo auto-domínio, pela objectivação, pela racionalização, pela contribuição para uma opinião pública esclarecida.
E há duas linhas que um juiz não pode nunca ultrapassar na sua intervenção pública: a da serenidade (indissociável da ponderação) e a da educação.
Um juiz alterado pela emoção, ou pela irritação, um juiz deselegante, incorrecto, descontrolado, disparatado, agressivo, desequilibrado, corresponde a uma machadada fatal na imagem que se pretende que a sociedade tenha da sua Justiça e dos seus Juízes : o caminho não pode ser nunca esse, pois, a seguir-se, mais cedo ou mais tarde, acaba por fazer-nos naufragar a todos (aos que o percorrem e aos que o vêem e com ele se preocupam).
A "justiça é discreta e não clamorosa" (Eduardo Lourenço, O Tempo da Justiça, in O Explendor do Caos, Gradiva, 3ª edição, 1999, pag. 86) e os juízes, como a sua face mais visível e exposta, também o devem ser, pese embora "a tentação mediática" constitua "um perigo real para a independência do juiz: é que, quando aceita ser notícia ou cede à tentação de fazer a defesa pública da sua imagem, o juiz corre, inevitavelmente, o risco de se deixar enredar em laços que, aos olhos do público, lhe roubam a independência.
E roubam-lha, porque o cidadão só acredita na independência do juiz quando este se lhe apresenta como alguém que, sem nunca perder a serenidade, se atém apenas aos factos, mantendo-se sempre indiferente ao que se diga ou possa dizer-se do caso que tem de julgar" ("O juiz deve ser um sujeito que goze de credibilidade social, dadas as características da sua função . O exercício da sua liberdade de expressão não deve desvalorizar o próprio crédito de quem a exerce nem dos outros órgãos jurisdicionais" - José Gabaldón López, Estatuto Judicial y Límites a la Libertad de Expresión e Opinión de los Jueces, in Revista del Poder Judicial, Número Especial XVII, Justicia, Información y Opinión Pública, I Encuentro Jueces-Periodistas, Noviembre 1999, pags. 424-425).
De resto, tudo (ou quase) pode ser dito, mas tem de se saber e ter os devidos cuidados com o que se diz e o como se diz, tendo presente que, desejavelmente, a intervenção pública de um Juiz deve sempre ser pautada por preocupações pedagógicas, sendo necessário que, quando se intervém se tenha a consciência das responsabilidades inerentes à função.
Na prática são regras de bom senso.
Por isso, o Juiz não deve ter medo de intervir, individualmente ou em colectivo.
Não deve calar, deve contribuir para o debate, deve ser pro-activo, procurando ser parte das soluções e não ser ele a criar os problemas.
Não é fácil esta gestão. Mas é possível. Mais, é desejável.
Edgar Taborda Lopes
Juiz de Direito