Wednesday, March 15

A DEPRESSÃO E (ALGUNS) CAMINHOS DE MUDANÇA
- debilidade da jurisdição, a crise
e o papel da associação dos juízes

1- É patente que o sistema de justiça sofre, no seu todo, as consequências de uma operação de cerco, diabolização, menorização e deslegitimação com evidente relação com a prolongada novela político-judicial-mediática do processo "Casa Pia" e outros casos que envolveram políticos e poderosos.
Tudo indica, ao mesmo tempo, que existe uma turva estratégia de ruptura, com os modelos construídos ao longo de trinta anos de democracia, que se alimenta com os climas da opinião política e da opinião pública inflamados nesse processo.
É uma estratégia de ruptura que se adivinha, mas que carece, para já, de rosto definido, de propostas claras, de fundamentação, de massa crítica para a sua operação. Afirma-se por sinais, ameaças, insinuações, provocações, modeladas numa campanha de agit-prop contínua destinada a debilitar, desorientar, confundir enquanto parece não surgir a oportunidade de "entrar a matar". Entretanto, vão sendo lançadas propostas, ao jeito de balões de ensaio, para a intromissão do poder político no judiciário como é o caso da "comissão para as escutas" ou a da "lei-quadro de política criminal", assentes numa inimiga desconfiança sobre a idoneidade e credibilidade do sistema e, por isso, num caminho de acentuada politização da justiça.
Trata-se, por enquanto e no cenário mais contido, talvez só de um sentimento e não ainda de um verdadeiro pronunciamento.
Mas o prolongado arrastar desse sentimento gerou já uma deriva extremamente perigosa e que permite antecipar que talvez estejamos a atingir alguns points of no return na cultura judiciária e na solvência do sistema e do Estado Democrático.
O Governo, através dos órgãos institucionais próprios, não resguarda o respeito devido, no discurso e nos actos, às instituições e protagonistas da jurisdição. É autor de tiradas incendiárias e de grandes e pequenos actos de gestão inconsequentes, hostis, sem nenhum esforço de explicação, justificação ou de concertação para o interior da organização.
Não profere, ainda que apenas no plano das aparências de Estado, qualquer discurso de conforto para com o papel da jurisdição. Nega até qualquer diálogo plural com outras forças políticas de expressão parlamentar, desvalorizando o relevo para o Estado constitucional dos assuntos do poder judicial, como se de meras questões particulares da administração pública se tratassem.
Entretanto, os juízes fervem de indignação. Sentem-se cada vez menos considerados como titulares de órgãos de soberania e cada vez mais como funcionários executores.
A jurisdição é, assim, debilitada por efeito da acção externa induzida pelo governo e debilita-se a si própria no caldeirão aceso da frustração e da desmotivação dos juízes.
Tudo isto é conhecido e, na minha opinião, de uma enorme gravidade. Esta debilidade conduz na via recta à cultura da jurisdição de baixo perfil e de escasso rendimento. A crise torna-se, só por isso, uma crise política (no quadro do modelo constitucional democrático) e uma crise operativa (na perspectiva dos resultados da organização).
O que parece desejado externamente, por quem alimenta o clima de cerco, é o regresso (em pleno século XXI) ao modelo do juiz napoleónico, burocrata, dócil, mero executor (incapaz de ser "força de bloqueio"). E ao que parece conduzir o clima "reactivo" dos juízes é a um desempenho "sem levantar ondas", das 9 às 5, sem afectos pela organização e pelos seus resultados. Este peculiar encontro prático de (des)interesses é potencialmente explosivo para os interesses da aplicação material da Constituição e da separação de poderes.
2- Que podem os juízes fazer colectivamente e o que têm feito?
Lamento dizê-lo, mas as perspectivas de trabalho da Associação dos Juízes no passado ajudaram a precipitar o reactivismo voluntarista instalado, tornando-o inteiramente inevitável. Um modelo desenvolvido de sindicato "tout court", formatou o trabalho associativo de tal forma que o sucesso ou insucesso dos dirigentes passou a ser medido fundamentalmente pelos maiores ou menores ganhos salariais alcançados por cada direcção. Em consequência, a acção lateralizou as questões estratégicas da valorização da jurisdição e do papel do juiz, enfrentando-as apenas numa lógica reactiva e criticista, acentuada sobretudo quando questões relativas à independência externa da jurisdição pareciam estar em causa (sem que as questões da independência interna tenham merecido igual atenção).
Esse modelo imperfeito não corresponde hoje aos interesses da jurisdição, ao espírito fundador, nem ao sentimento dos juízes, associados ou não – é sabido que quando se referem à ASJP com carinho, ou apenas com normalidade, a designam por "associação" e quando a querem diminuir a tratam por "sindicato".
Esse modelo não ajuda a pensar o sistema, a conceber uma visão de curto, médio e longo prazo, a formular propostas consentâneas, a intervir com um argumentário sólido no aperfeiçoamento das instituições.
Decididamente, não ajuda a resolver e a prevenir disfunções da organização da jurisdição, sendo que é aqui que se encontram os maiores problemas que o juiz hoje enfrenta e que necessita de, colectivamente, pensar e resolver.
Que propostas concretas e detalhadas são conhecidas à Associação para racionalizar as cargas de serviço que cada juiz tem de suportar, para o aperfeiçoamento do mapa judiciário, para a gestão dos tribunais, para o sistema de recrutamento e formação dos juízes, para o Estatuto dos Juízes, para a consolidação do órgão de governo da jurisdição (o CSM/CSTAF), com a relevância que deve ter? A verdade é que nenhumas. Não havendo propostas, não há discussão, não se constitui massa crítica, não se constrói uma visão colectiva.
E sem essa visão, sem um exercício de constante prospecção do futuro e do papel da jurisdição e do juiz, pouco se pode fazer para participar construtivamente no aperfeiçoamento da jurisdição, de forma responsável, serena e prestigiante. Em suma, não se ganha a autoridade colectiva que todos precisamos para que o sistema tenha o afecto e o comprometimento por parte de cada juiz.
A ausência de todo este "trabalho de casa" conduz ao reactivismo imediatista, sem a prudência e a credibilidade da sabedoria colectiva construída.
É evidente que, nesse caso, as coisas não podem ser diferentes do que são hoje. Não critico a actual direcção da ASJP pelo desempenho (dedicado, reconheço-o) que teve nesta crise de dimensões não vistas antes. Tirando um ou outro erro de palmatória, a sua actuação teve o seu quê de óbvio e inevitável. Mas critico o modelo de trabalho, na sua dimensão exclusivamente sindical, e penso que tem de ser alterado de uma vez por todas.
Não é mais desejável o cenário de combate de trincheiras, inteiramente reactivo, sem objectivos estratégicos alargados, no qual cada acção repete uma acção anterior, sem que seja possível antever novos passos para evolução positiva do conflito instalado. Sobretudo quando se confronta um adversário mais interessado em rupturas do que em construir um sistema judicial eficaz, organizado e motivado. O caminho dos buracos é o caminho das toupeiras e os juízes não querem, seguramente, ser toupeiras.
3- Na minha opinião e da lista que integro para disputar a próxima eleição aos órgãos da ASJP, encabeçada por António Martins, a alteração do modelo de trabalho é necessária e passa pela concretização de algumas importantes ideias estratégicas que, particularmente, me aliciam e pelas quais pessoalmente me empenho e que quero aqui referir.
Concretizar um modelo de contingentação processual, com efectiva quantificação das cargas de trabalho adequadas para cada juiz, em função da sua especificidade na carreira e nos diferentes tribunais é, quanto a mim, a principal ideia estratégica, a jóia da coroa, o eixo central do trabalho que induzirá outras propostas. Permitirá estabelecer indicadores operativos para efeitos de gestão, da qualidade e da defesa profissional responsável, ajustando o volume de serviço do tribunal ou juízo à capacidade exigível ao juiz, e permitirá aferir, em qualquer caso, do grau de adequação da estrutura e orgânica judiciária. Permitirá ensaiar, de forma criativa, soluções inovadoras de ajustamento flexível na distribuição, nas medidas de apoio ao juiz, no tratamento da informação de gestão, na cadeia de governo da jurisdição e, com grande importância, na criação de ambientes de trabalho amigos e motivadores, essenciais para os alinhamentos subjectivos necessários ao sucesso da missão dos tribunais.
Para este trabalho é proposto um Gabinete específico, uma unidade de missão, que contará com os melhores recursos, na medida em que é a prioridade.
Existe uma outra ideia estratégica, esta verdadeiramente estruturante de todo o trabalho e discurso da Associação no curto e médio prazo: o Livro Branco do Poder Judicial. A organização deste Livro visará, em primeiro lugar, condensar de forma séria, sistemática e integrada o diagnóstico de todos os congestionamentos organizativos, logísticos e de funcionamento do poder judicial e dos tribunais na perspectiva dos juízes.
Em segundo lugar, inventariar um conjunto de soluções articuladas para a sua resolução que constituam as bases das propostas a apresentar à sociedade, ao CSM/CSTAF, à Assembleia da República, ao Governo. Será o pilar da investigação para construir e consolidar a visão que faz falta.
A responsabilidade deste trabalho será, segundo é proposto, de uma estrutura autónoma, sob a designação de Gabinete de Estudos e Observatório dos Tribunais. Esta estrutura da Associação dos Juízes envolverá uma vasta equipa que assegurará a produção de investigação, estudos, pareceres e propostas, ao mesmo tempo que ligará a sua actividade à realidade dos tribunais, gerindo-a de modo a que a informação recolhida daqueles, constantemente, possa ter os devidos reflexos na selecção dos temas a desenvolver.
Todo o trabalho produzido será objecto de cuidada divulgação, no âmbito da estrutura de comunicação da ASJP e da nova política editorial proposta.
Acrescentar toda esta dimensão de trabalho à Associação requer bem mais esforço do que aquele que, actualmente, é desenvolvido. Mas é essencial para progredir nos caminhos da mudança, ao mesmo tempo que permite congregar um número muito elevado de juízes nas equipas a organizar, independentemente das suas afinidades de grupo, aumentando a participação, elevando o nível do debate, forjando um novo papel para a Associação, de alcance provavelmente muito maior do que as actuais expectativas podem antecipar.
É que, apesar de tudo, as coisas podem mudar…
Acredito, sinceramente, que os juízes querem a mudança. Essa vontade há-de permitir ganhá-la.

Luís Azevedo Mendes
Juiz de Direito
Candidato a Vice-Presidente
da Direcção Nacional