Tuesday, February 21

ASSOCIAÇÃO SINDICAL DOS JUÍZES PORTUGUESES
ELEIÇÕES


DA LISTA LIDERADA PELO
JUIZ DESEMBARGADOR
ANTÓNIO FRANCISCO MARTINS

Friday, February 3

ENTREVISTA AO JUIZ DESEMBARGADOR ANTÓNIO MARTINS, CANDIDATO A PRESIDENTE DA DIRECÇÃO DA ASSOCIAÇÃO SINDICAL DOS JUÍZES PORTUGUESES

Justiça e Democracia (JD) – Num período particularmente conturbado para a Justiça e para os Juízes quais as razões que o levaram a candidatar-se à direcção da A.S.J.P.?

António Martins (AM) – Basicamente duas razões: inconformismo com o actual estado de coisas e a convicção de que é possível fazer mais e melhor. Não me conformo com o estado de abandono a que foi votado o sistema judicial e com a falta de condições para um correcto funcionamento desse sistema, que possa dar resposta, e em tempo útil, aos direitos dos cidadãos. Não me conformo que os juízes trabalhando, em regra, muitas horas acima da média e sacrificando-se pessoal e familiarmente para fazer a melhor justiça possível, com os parcos meios e condições disponibilizadas, além de sobrecarregados de processos, sejam tão desconsiderados como o têm sido, nomeadamente pelo poder político, como aconteceu recentemente com a acusação, implícita, de que mais não éramos do que uns “calaceiros”.
Não me conformo que, não obstante tudo isto e muito mais, a reacção da Direcção da ASJP tenha sido a que foi: inábil, desgarrada, sem rumo definido e a reboque de outros actores. Penso que num momento particularmente delicado como o que os Juízes vivem neste momento, em que quase tudo em termos do seu estatuto sócio-profissional é colocado em causa, a reacção da Direcção da ASJP tem que ser muito firme, embora hábil, estrategicamente delineada na prossecução do objectivo de garantir aquele estatuto e sem andar a reboque de ninguém. Em resumo: é possível fazer mais e melhor.

JD – A recente greve dos Juízes que comentário lhe merece?

AM – Três comentários.
O primeiro prende-se com o facto de, infelizmente, a Direcção da ASJP não ter conseguido fazer passar a mensagem, essencial, da razão da greve e de não ter conseguido desmontar a estratégia governamental, que consistiu em colar-nos o rótulo de que a greve era por meras questões sindicais e que apenas pretendíamos garantir “privilégios”.
Como segundo comentário creio, no entanto, que a greve teve dois efeitos positivos: um consistiu na coesão dos juízes, demonstrada pela adesão maciça à greve. O outro foi o facto de ter sido a oportunidade de demonstrar tal coesão perante o poder político e, dessa forma, ter conseguido emperrar, por algum tempo, a cavalgada de ataque ao poder judicial que estava delineada.
Esse ataque irá continuar, como veremos, mas em ritmo diferente.
Infelizmente porém, e aqui entra o terceiro comentário, a Direcção da ASJP não preparou o dia seguinte à greve. Por falta de previsão não percebeu que a posição governamental de paragem no ataque ao poder judicial era apenas momentânea, aguardando a oportunidade adequada, que pelos vistos já se verifica, como se constata pela anunciada “carreira plana”. Por falta de estratégia ficou parada à espera de que as coisas acalmassem, parecendo esquecer e querer que se esquecesse o que tinha acontecido, como se isso fosse possível. Claro que desta forma a actual Direcção da ASJP vai continuar a reboque dos acontecimentos.

JD – Uma vez eleito Presidente da A.S.J.P. haverá uma estratégia definida para a intervenção dos Juízes nas reformas da Justiça?

AM – Não só haverá uma estratégia bem definida, como existirão objectivos a atingir com a mesma. A perspectiva não é bem a de que a melhor defesa é o ataque, mas anda perto disso. Ou seja, os juízes sabem muito bem o que é necessário para que o sistema judicial seja moderno, com realização da justiça de forma célere e acessível aos cidadãos.
Nessa medida, a atitude tem de ser a pró-actividade. Vamos elaborar e apresentar propostas em vários domínios, com vista a alcançar aqueles objectivos. Vamos ser mais visíveis, pelos motivos certos, e transmitir a mensagem adequada.

JD – Será possível envolver os Juízes na discussão pública das reformas?

AM – Não só tem que ser possível como não admitiremos que sejamos postos à margem dessa discussão, como vem ocorrendo actualmente. Veja-se o exemplo da Unidade de Missão para a Reforma do Direito Penal que não integra qualquer juiz.
Por isso referia atrás que a estratégia tem de ser a pró-actividade em vez da atitude passiva e de mera reacção, muitas vezes perante factos praticamente consumados.
Nas reformas necessárias ao sistema judicial é imprescindível que os juízes tenham uma palavra a dizer. Aliás, muitas dessas reformas devem partir da nossa iniciativa, apresentando projectos legislativos e pugnando por soluções que visem proporcionar, efectivamente, o direito à justiça.

JD – O estatuto sócio-profissional dos Juízes constitui ou não um dos requisitos essenciais para a salvaguarda da independência do Poder Judicial?

AM – Sem dúvida alguma.
É óbvio que se o juiz tiver um estatuto sócio-profissional degradado, sem condições adequadas de trabalho e com um nível remuneratório insuficiente, atentas as especiais exigências da função, está permeável na sua capacidade de ser independente.
E será caso para perguntar: a quem interessa um juiz assim?
Ao cidadão comum concerteza que não. Só poderá interessar a quem tiver condições económicas ou de exercício de poder capazes de usar aquela permeabilidade para a satisfação dos seus interesses particulares, que serão sempre em prejuízo dos interesses gerais da sociedade.

JD – Como perspectiva o quadro de vencimentos dos Juízes?

AM – Pese embora se possa considerar que o momento não é favorável a reivindicações de natureza salarial, face à actual crise económica, há que deixar claro que o actual quadro de vencimentos dos juízes se encontra abaixo do adequado para o nível e as exigências únicas e singulares da função. Tal situação é especialmente visível e sentida pelos colegas que estão nos primeiros anos da sua carreira, pois são dos mais afectados por esta degradação dos vencimentos dos juízes e dos mais penalizados pelas exigências da função, nomeadamente perante a envolvente social e económica, que é mais sentida e visível em comarcas de menor dimensão.
Também tenho a noção de que, realisticamente, nas actuais condições, não é fácil fazer passar aquela mensagem em termos do cidadão comum.
Porém, é aspecto que tem que ser discutido e equacionado com o poder político, nomeadamente pela demonstração de que os pressupostos com base nos quais foi perspectivado e fixado o quadro de vencimentos dos juízes, através da Lei 2/90, se encontra hoje completamente subvertido. Desde logo porque teve como pressuposto a posição dos juízes enquanto titulares de órgãos de soberania e uma determinada paridade com outros titulares de órgãos de soberania. A evolução posterior, na atribuição de uma série de regalias para estes outros titulares de órgãos de soberania, ficando os juízes amarrados a uma percentagem do vencimento do Presidente da República, constituiu uma forma ínvia de alterar aquela paridade. Depois porque havia naquele quadro de vencimentos um determinado escalonamento entre os vencimentos dos juízes, em função da antiguidade e colocação nos vários tribunais (1ª instância, relação e supremo) e hoje tal escalonamento é, nalguns casos, praticamente inexistente ou diminuto. Este facto leva a situações caricatas, de juízes colocados em tribunais de 1ª instância (nomeadamente nas ilhas) que preferem não ascender aos tribunais da relação por, na prática, irem perder dinheiro.

JD – E os serviços médicos de assistência aos Juízes e seus familiares?

AM – Foi inadmissível aquilo que o Governo fez, ao excluir os juízes de beneficiários dos SSMJ, ainda para mais com os argumentos que inicialmente invocou e que não têm qualquer sentido, face ao universo de beneficiários dos SSMJ agora definidos pelo DL 212/2005.Tenho a consciência de que nesta matéria será difícil uma regressão deste Governo, nem que mais não seja por uma questão de não querer perder a face e admitir que errou.
Porém creio que deve fazer parte das preocupações da futura direcção da ASJP demonstrar que os pressupostos que estão na base da decisão tomada por este executivo estão errados e bater-se, no futuro, se for caso disso, por uma alteração daquele diploma legal, de modo a voltar a incluir os juízes como beneficiários dos SSMJ. E digo se for caso disso, porque é necessário acompanhar em que termos é que vão evoluir os SSMJ, já que não é de excluir que a assistência médica a prestar através dos mesmos se venha a degradar de tal forma que deixe de ter interesse útil ser beneficiário desse regime.
Aliás, tenho dúvidas que o propósito final desta alteração legislativa não tenha sido afinal esse: levar à degradação total da assistência a prestar no âmbito dos SSMJ, o que conduzirá à sua extinção.

JD – O estatuto da Jubilação deverá manter-se tal qual está?

AM – Sem dúvida alguma. Caso sejamos eleitos para a Direcção da ASJP não abdicaremos da manutenção desse estatuto, nos termos actualmente consagrados. Aliás é preciso fazer notar que tal estatuto não é apenas um conjunto de direitos. Inclui a generalidade dos deveres que oneram os juízes em efectividade de funções e é precisamente em função desse conjunto, incindível, de direitos e deveres que deve ser considerado. E desengane-se o poder político de procurar, também aqui, tentar fazer passar a ideia de qualquer privilégio. Esse estatuto só era possível até agora, em regra, ao fim de 36 anos de duro serviço e/ou 65 anos de idade. No futuro, e embora com implementação progressiva, só será possível ao fim de 40 anos de serviço. Nada disto é nada comparável às reformas dos Srs. Deputados (durante muito tempo ao fim de 8 anos de mandato e actualmente 12 anos) ou de outros titulares de órgãos de soberania. Já para não falar dos famosos subsídios de integração que estes recebem quando terminam as suas funções de titulares de órgãos de soberania, às vezes exercidas durante poucos anos, quando não apenas durante alguns meses.

JD – Num quadro de alteração do mapa judiciário, que propostas entende deverem ser avançadas pelos Juízes?

AM – Há várias propostas que podem e devem ser feitas visando basicamente dois objectivos: que os tribunais se ocupem de questões que tenham dignidade para tal e não de pequenas bagatelas, cíveis, penais ou contra-ordenacionais; que a organização judiciária corresponda às necessidades da realidade social e económica do pais e não seja apenas a manutenção de situações herdadas do passado, mas desfasadas da realidade actual, ou a mera satisfação de interesses políticos. Assim, tem que ser revisto o enquadramento dos julgados de paz, integrando-os no sistema judicial, bem como redefinidas as suas competências, de modo a que se possam ocupar daquelas bagatelas.
A comarca deve ter por base a realidade social e económica e não como pressuposto o mapa administrativo. Qualquer presidente de câmara deste país opor-se-á a que o “seu” concelho perca o tribunal aí instalado. Mas nalguns casos, em função do movimento processual, não tem sentido a manutenção desse tribunal. Claro que compreendo a necessidade de se tomarem em consideração algumas especificidades, como o caso das ilhas e das regiões interiores. Mas mesmo nestas situações impõe-se solução diferente da actual, que não passe pela agregação de comarcas, pois isso representa sacrifícios para o juiz, sem qualquer compensação pelos mesmos. Admito que a solução para essas especificidades possa ser a acumulação de funções, pois dessa forma poderão ser compensados aqueles sacrifícios.
Tendencialmente devemos compatibilizar as comarcas com a especialização, pois só tem sentido a competência genérica aonde não for viável, por razões geográficas e número de processos insuficiente, a implementação de juízos especializados.
É fundamental a criação de juízos de instrução criminal em todos os círculos judiciais. Como sabemos tem sido a prática do CSM, ao colocar juízes com funções de instrução criminal além do quadro, o que tem suprido a falta de previsão (para não dizer incapacidade) do poder legislativo que, na actual Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais só os previu para as cidades de Lisboa, Porto e Coimbra. Importa igualmente criar o Tribunal Central Criminal, ajustado aos julgamentos dos chamados “mega-processos”.

JD – E a contingentação? Como será a mesma defendida por si?

AM –A contingentação é um ponto de honra desta candidatura à Direcção da ASJP. Ando há mais de vinte anos nos tribunais e sempre ouvi falar da contingentação, nomeadamente quando se avizinham estes actos eleitorais. Aliás basta olhar para o programa eleitoral que há três anos atrás a actual Direcção da ASJP então apresentou aos colegas. Porém, a seguir à proclamação das vitórias eleitorais é tema que desaparece das preocupações das Direcções eleitas, como aconteceu com a actual Direcção. Aliás, por vezes, até se tem a ideia que é assunto tabu ou a endossar para outros, como aconteceu na última Assembleia Geral, com o actual Presidente da Direcção a pretender passar a questão para o CSM. Ora, quero aqui afirmar que a contingentação será uma realidade a implementar no nosso mandato caso sejamos eleitos para a Direcção da ASJP. Os termos e a forma de implementação dessa contingentação serão objecto de proposta da Direcção da ASJP a apresentar à Assembleia Geral, proposta essa que me comprometo a apresentar no prazo máximo de um ano, e será a vontade dos associados aí manifestada que decidirá soberanamente.
Aliás não é preciso alertar os juízes que esta questão da contingentação ganha uma actualidade premente, perante os termos em que o poder politico projecta a questão da responsabilidade civil face aos atrasos na realização da justiça. E não se trata, da nossa parte, de negar toda e qualquer possibilidade de responsabilidade. Aceitamos discutir a questão, precisamente porque os juízes são pessoas responsáveis. O que não podemos aceitar é que o juiz possa ser responsabilizado e penalizado se tiver a si afecta uma pendência processual inumana. Aí a responsabilidade é do Estado, nomeadamente do poder político e/ou legislativo, que não possibilita realizar Justiça em tempo útil e, então, esse mesmo poder politico e/ou legislativo é que tem de ser responsabilizado.


JD – Os assessores judiciais poderão constituir uma ferramenta fundamental para a modernização da Justiça?

AM – Poderiam e eu utilizo esta forma verbal para fazer notar que é mais uma das matérias em que o poder político e legislativo não tem um rumo ou orientação.
Primeiro criaram a figura dos assessores judiciais, através da Lei 2/98. Depois a figura dos assistentes judiciais, pelo DL 330/2001.
Entretanto deixaram cair os assessores, ou melhor, extinguiram-nos na prática para os Tribunais da Relação e tribunais de 1ª instância, apenas os mantendo para o STJ e aqui porque o seu universo de recrutamento é entre juízes de 1ª instância. É de relembrar que aquela extinção prática ocorreu com a criação de um curso especial de acesso ao CEJ para permitir que os assessores então em funções nos tribunais de 1ª instância, oriundos do único curso de assessores judiciais que foi realizado, fossem integrados nas magistraturas.
Quanto aos assistentes judiciais, bem poderíamos dizer que estamos perante um nado-morto, já que nunca viram a luz do dia. Com efeito, nunca foi publicada a portaria prevista naquele DL 330/2001, da responsabilidade dos Ministros da Justiça, das Finanças e da Reforma do Estado e da Administração Pública fixando o número de assistentes judiciais cuja contratação seria autorizada. Mas é claro que os assessores, tal como o secretariado, integrados no gabinete do juiz, poderão constituir um instrumento fundamental para criar condições de que o juiz faça apenas a sua função: julgar. E não que seja, como hoje é, uma mulher ou homem de sete ofícios: dactilógrafo desde logo para escrever as suas decisões; operador de informática para scanear peças processuais, de modo a ganhar algum tempo ao não ter que as dactilografar nas suas sentenças/acórdãos; corrector de actas, quando não elaborador das mesmas, face à escassa ou nula formação com que os Srs. Oficiais de Justiça são colocados a trabalhar nos tribunais e à não possibilidade de designar os mais capazes para a realização das diligências, máxime os julgamentos; elaborador de relatórios, como parte da peça decisória, que procuram condensar o que de relevante ocorreu ao longo dos autos; pesquisador de jurisprudência, doutrina e legislação e, muitas vezes, face à inexistência de biblioteca adequada nos tribunais, obrigando a deslocações a bibliotecas que possibilitem tais pesquisas.
Claro que isto só tem sido possível porque o poder politico ainda não percebeu que se o juiz for colocado só a julgar, libertando-o daquelas funções e até de outras, como o despacho de mero expediente, as quais podem ser efectivamente realizadas por secretariado e assessorias, ganhará em muito em termos de modernização do sistema de justiça e de produtividade.

JD – Fala-se também na desmaterialização dos processos. Será esse o caminho para a celeridade?

AM –Do que tenho ouvido falar até ao momento sobre essa questão, e não tem sido muito, pois ainda não vi explicado e concretizado o que seja tal desmaterialização, nomeadamente se é uma cópia do modelo que está a ser implementado nos Tribunais Administrativos e Fiscais ou se é apenas uma “desmaterialização dos recursos”, como já se ouviu falar, apenas uma imagem me ocorre para definir a atitude do Sr. Ministro da Justiça: folclore … com todo o respeito por esta dança popular portuguesa. Ou seja, não sei se estão a divertir-nos, mas seguramente estão a entreter-nos.
É óbvio para quem cá anda nos tribunais, que pelos vistos não será o caso do Sr. Ministro, que a desmaterialização não será a panaceia que por aí se anuncia. Aliás basta atentar no que está acontecendo naqueles Tribunais Administrativos e Fiscais para nos questionarmos se a panaceia não matará o doente em vez de o curar. As sentenças não se elaboram primindo a tecla Enter. A informática pode ser um instrumento de celeridade, mas quando é o próprio juiz a ter que ser a pessoa que processa os seus textos e a ter que fazer o scaner de textos que necessita de aproveitar, estamos conversados quanto aos termos em que se pretende que a informática possa ser útil.
Por outro lado, há que repensar em que termos é que o domínio da informática dos tribunais, nomeadamente em termos de acesso através dos servidores, deve estar na Administração ou noutras entidades (eventualmente os Conselhos Superiores das Magistraturas). É que as recentes notícias da possibilidade de fugas de informação e de violações de segredo de justiça terem origem na falta de segurança do sistema informático instalado pelo Ministério da Justiça nos tribunais, o Habilus, têm que ser devidamente esclarecidas.
Para daí se tirarem as necessárias consequências. Até porque a defesa dos direitos, liberdades e garantias não podem ser apenas palavras vãs ou a usar conforme dê jeito em determinada situação.
Ainda voltando à desmaterialização, neste momento quem estará contente com a mesma, mais do que as pessoas que trabalham nos tribunais, que ainda hoje não lhes foi devidamente explicado o que ela virá a ser, serão as empresas vendedoras de material informático.
E é precisamente aqui, na relação custos/benefícios, que se coloca o problema. Sabemos que o caminho para a celeridade não é este da desmaterialização. O dinheiro, que o poder politico enche tanto a boca como sendo dos contribuintes e que por isso teria de ser bem aplicado, seria concerteza melhor empregue se fosse utilizado naquela perspectiva que já referi, criação de secretariado e assessoria para o juiz poder fazer apenas a sua função: julgar.

JD – O acesso aos Tribunais da Relação e ao Supremo Tribunal de Justiça deverá deixar de constituir um dos horizontes profissionais dos Juízes? Por outras palavras, o que pensa da chamada “carreira plana”?

AM – Nos termos em que foi anunciada a chamada “carreira plana”, não tenho dúvidas nenhumas de que se trata de um autêntico golpe de estado constitucional.
Será a quebra da tradicional separação de poderes, legislativo, executivo e judicial que é uma garantia do estado de direito democrático, da independência do poder judicial e da defesa dos direitos, liberdades e garantias do cidadão.
Na verdade, com tal medida estarão criadas as condições para que o poder político invada o poder judicial e quebre a sua unidade, enquanto corpo de magistratura único e independente.
Acrescerá que dessa forma os juízes de 1ª instância serão deslegitimados e desqualificados.
Deslegitimados desde logo porque podendo as suas decisões ser objecto de apreciação por quem não teve qualquer experiência anterior de julgar, nem de julgamentos, nomeadamente na 2ª instância em termos de reapreciação das decisões sobre matéria de facto, aquilo que é um dos pressupostos da arte de julgar, a experiência adquirida e sedimentada, deixa de poder servir de legitimação para as decisões judiciais de 1ª instância.
Mas serão também desqualificados, até porque no futuro não ingressarão na carreira de juízes aquele nível técnico e cientifico de pessoas que hoje ingressam. Quem virá para uma carreira profissional que não lhe dá qualquer longos e vários anos, passar de uma comarca de 1º acesso (muitas vezes em regiões geográficas desfavorecidas e sem as condições adequadas de instalação de família e criação de filhos) para uma comarca de acesso final?
Por tudo isto, e muito mais se poderia dizer - e seguramente dirá -, tal projecto de “carreira plana” terá a firme e tenaz oposição da Direcção da ASJP, caso sejamos eleitos.

JD – O que pensa da especialização do juiz?

AM – Deve tender-se o mais possível para essa especialização, aliás de acordo com uma organização judiciária que a favoreça, como acima referi.
Creio que tal se impõe desde logo porque o Direito é, cada vez mais, um universo dificilmente abarcável, com total profundidade e qualidade. Por isso é adequado que o juiz, que deve conhecer com profundidade as questões submetidas à sua decisão e deve decidir com qualidade, seja cada vez mais um especialista, do cível, do penal, do laboral, do administrativo, do fiscal, dos menores e família, etc.
Depois tal opção também é defensável em função do facto de a especialização levar a níveis de eficácia e produtividade muito superiores em relação às comarcas de competência genérica em que se abrange uma pluralidade de ramos do direito.

JD – O acesso aos Tribunais superiores deve ou não contemplar a especialização?

AM – Creio que sim, sendo válidas as razões atrás delineadas.
Agora o que não tem sentido é o que vem acontecendo actualmente em que a colocação nas diversas secções nos tribunais superiores leva a situações em que juízes que fizeram praticamente toda a sua carreira na 1ª instância numa jurisdição (cível, crime ou laboral) são depois colocados na 2ª instância noutra jurisdição. E não têm forma de evitar isso porque quando concorrem aos tribunais superiores até desconhecem em que secção é que existirão vagas.

JD – E quanto à formação dos Juízes? Deve manter-se a formação conjunta com os candidatos ao Ministério Público?

AM – Não há razões válidas para manter tal formação conjunta, pois ambas as magistraturas e, principalmente os utentes da justiça, só tem a perder com a formação nos termos em que está delineada. Actualmente ainda pior do que no passado, pois tal formação conjunta está prolongada à segunda fase da formação, a fase de iniciação como sabemos, o que dá lugar a situações caricatas. Auditores que fazem os primeiros seis meses dessa formação na magistratura judicial, os seis meses seguintes na magistratura do Ministério Público e, depois, optando pela judicatura, vão iniciar funções como juiz em regime de pré-afectação (com responsabilidade própria) sem estarem em contacto com a formação de juiz há mais de sete meses e meio (entretanto ocorreram as férias judiciais). Se não for possível a formação em escolas separadas, o que seria o ideal como aliás acontece em Espanha, então é necessário que se parta para uma formação dos juízes e dos magistrados do Ministério Público com completa autonomia dos cursos de formação, ab initio, sendo estes direccionados para as funções especificas de cada uma das magistraturas.
Aliás, um exemplo provado do erro deste tipo de formação, além do que acima já referi e agora voltado para a vertente do Mº Pº, está no facto de ele não potenciar devidamente a investigação criminal, nomeadamente por não dar formação especifica e aprofundada nessa área aos candidatos ao Mº Pº (o que se crê só ser possível com cursos separados) e também por descurar absolutamente a formação quer ao nível da direcção do inquérito quer ao nível da direcção funcional das policias por parte do Mº Pº.
Depois não é de admirar que, conjugando isso com outros factores, entre eles um processo penal inadequado, tenhamos os resultados que temos na investigação criminal.

JD – Num quadro de discussão da modernização da Justiça qual o papel do
Ministério Público?

AM – O papel do Ministério Público, numa Justiça modernizada, afigura-se-me que não tem sentido ter a amplitude que hoje lhe é conferida, nomeadamente em domínios de representação do Estado, Regiões Autónomas e autarquias locais, quando estejam em causa matérias que não tem a ver com o núcleo essencial da actividade estadual em termos de interesse público. Esse papel é aliás pouco compatível com a autonomia do próprio Mº Pº e cai-se depois em situações pouco abonatórias, como aconteceu no caso Aqua Parque, com instruções dum Ministro (Dr. António Costa) ao Mº Pº para recorrer da decisão judicial de 1ª instância e depois outro Ministro (Dr.ª Celeste Cardona) a fazer um acordo por transacção.
Aquele papel, numa Justiça moderna, deve restringir-se ao essencial, nomeadamente direcção da investigação criminal e exercício da acção penal, com celeridade e níveis de eficácia elevados.

JD – Concorda com os defensores oficiosos avençados?

AM – Não se me afigura que seja a melhor solução. Embora pior do que a actual não seja fácil, o que não significa impossível, pois este Ministro da Justiça já nos habituou às maiores faltas de sensatez. E bem pode vir a ser pior, se não houver transparência e fiscalização na forma como serão feitas essas avenças. Será que mais uma vez serão dois ou três grandes escritórios de advogados a contratar com o Estado (e eventualmente a subcontratar na província)? Veremos.
Ponto importante é que tem de encontrar-se uma solução, melhor que o actual sistema, para a resolução dum problema que é tarefa indiscutível dum Estado de Direito: assegurar que todo o cidadão, que não tenha possibilidades económicas, tem direito a uma defesa eficaz, visando acautelar e salvaguardar os seus direitos, liberdades e garantias.
Creio, porém, como aliás já tive oportunidade de defender em artigo publicado no livro Interrogações à Justiça, que a melhor solução para aquele problema e com menores custos, será através da institucionalização da figura do defensor público, desde que sejam acautelados alguns dos vícios que a criação de tal figura poderá originar, como potencialmente pode acontecer com todas as instituições.

JD – Os recursos para os Tribunais superiores deverão estar ao alcance de todo e qualquer advogado?

AM – Tenho por seguro que não. A Ordem dos Advogados tem de assumir, até para defesa do prestígio da advocacia, que o recurso para os tribunais superiores tem de ser restrito a advogados que, reconhecidamente (pela Ordem dos Advogados), tenham qualidade técnica para o exercício da advocacia nesses tribunais.
Não tem sentido que a Ordem dos Advogados emita uma cédula profissional a alguém que fez um estágio de dois anos atribuindo-lhe capacidade para, no dia seguinte, poder subscrever peças processuais e recursos dirigidos a qualquer tribunal, incluindo o Supremo Tribunal de Justiça.
Ainda recentemente me contaram duas situações, ocorridas neste Tribunal, que são o retrato caricatural do actual sistema.
Numa delas, a ilustre advogada, nas alegações orais realizadas naquele tribunal, sistematicamente apelidou o tribunal “a quo” de tribunal “a cú” – clara ignorância da forma de pronunciar a expressão latina e do seu sentido – o que levou o Juiz Conselheiro que presidia à sessão, terminada esta, a tranquilizar um dos Juízes Conselheiros adjuntos, recentemente aí em exercício de funções, dizendo-lhe ironicamente que nem todas as sessões eram assim pornográficas.
Na outra situação a Exmª Advogada depois de tecer várias referências e insistências sobre a valoração da prova produzida no julgamento em 1ª instância, teve de ser advertida para o teor da lei: o Supremo Tribunal de Justiça não podia conhecer de matéria de facto, salvo raras excepções, não se enquadrando nestas as alegações que estava a produzir.

JD – Como será possível pensar uma reforma global para a justiça sem meios económicos para o fazer?

AM – Claro que sem ovos não é possível fazer omeletes. Mas aí o Estado tem de assumir aquilo que nunca assumiu até ao momento, ou seja, que tem posto a funcionar um sistema de justiça com escassos recursos económicos e, ainda por cima, os disponibilizados têm sido mal direccionados.
No entanto também se me afigura adequado esclarecer que, se houver propósitos claros no que se pretende e tais propósitos forem sérios, há muitas reformas que não dependem de meios económicos.
Agora o que não será possível é realizar uma reforma da justiça que não valorize o, em regra, excelente capital humano constituído pelos profissionais que exercem funções no sistema de justiça, máxime os juízes. E muito menos será possível levá-la a cabo se tais profissionais forem desconsiderados e caluniados, como o têm sido pelo actual executivo.

JD – A manter-se a situação de autismo profundo por parte do Governo, não ouvindo os Juízes e não encarando com seriedade as reformas necessárias para a justiça, como será possível aos Juízes defenderem a sua independência?

AM – Fazendo ouvir bem alto a sua voz e usando de toda a imaginação para isso. E quando digo “bem alto” não digo aos berros. Pretendo dizer que os juízes devem ter uma intervenção intensa e profunda, quer no dia a dia do exercício das suas funções, quer na dita sociedade civil e mesmo na “agenda política”.Desde logo intervindo, com um nível de excelência, no desempenho corrente das suas funções, no dia-a-dia. Um juiz que, pelo exercício brioso, correcto e de grande profissionalismo das suas funções, ganhe o respeito e admiração dos seus concidadãos e dos profissionais do foro que com ele tenham contacto, é um juiz que será escutado e compreendido ao intervir, quando for caso disso e sempre que disso for caso, dando conta das parcas e deficientes condições em que tem de exercer as suas funções e da forma como elas poderiam ser exercidas de forma mais proveitosa para a sociedade.
Mas também intervindo na sociedade civil, nomeadamente através da ASJP que, em parceria com as Universidades, poderá organizar colóquios temáticos sobre as questões da justiça e as reformas necessárias, apresentando propostas de solução para essas questões. É exemplo concreto a questão da reforma da acção executiva, apresentada pelos últimos quatro ministros da Justiça como o “ovo de Colombo” para conseguir a almejada diminuição da pendência processual e que, neste momento, bem pode ser considerada, para qualquer cidadão que seja credor e pretenda ver acautelado o seu direito através do processo executivo, como “o calvário da cruz” e, para o juiz, como a garantia de que os seus dias não mais serão monótonos. Com efeito, os credores dificilmente conseguem obter o seu crédito e nunca sem um longo calvário, e os juízes viram triplicada (pelo menos) a sua intervenção processual nos processos executivos, tal é o emaranhado da legislação e a pouca preparação dos solicitadores para a execução das funções que o legislador lhe atribuiu.
Há outros domínios em que os juízes e a sua associação sindical têm de conseguir fazer ouvir a sua voz, de modo a que ela chegue aos seus concidadãos e à classe politica.
Um deles respeita à imprensa, impondo-se alterar a relação distante que a actual Direcção da ASJP tem mantido. Creio que a aproximação com a comunicação social, embora sem qualquer promiscuidade, permitir-nos-á, por um lado desmistificar alguns “fazedores de opinião” que por aí pululam e, por outro, transmitir a mensagem correcta do juiz enquanto pessoa especialmente preocupada em fazer justiça, mas cuja acção é balizada por um determinado quadro legal e por um concreto contexto em termos de condições de trabalho, nomeadamente de sobrecarga processual que lhe está afecta.
Outro domínio onde é preciso fazermo-nos ouvir é ao nível dos representantes do povo, em termos legislativos, os Srs. Deputados. É necessário que, principalmente os Srs. Deputados que integram os partidos da oposição, saibam o que pensam os juízes sobre as reformas necessárias para a justiça, o perigo concreto para o Estado de Direito que decorrerá da existência de juízes sem independência e quais as propostas concretas que temos de forma a lograr atingir o objectivo de uma justiça que acautele os direitos, as liberdades e as garantias, num tempo adequado.

JD – E a nível interno, não é necessário que os juízes debatam mais intensa e profundamente, não só as questões que os afectam enquanto classe profissional, mas também o sistema de justiça na sua globalidade, com vista a melhorá-lo?

AM – Estou inteiramente de acordo.
Aliás as próximas eleições para os vários órgãos da ASJP poderiam e deveriam ser um momento privilegiado para esse debate.
Aproveito para lançar aqui um desafio no sentido de, pelo menos ao nível dos candidatos a Presidente da Direcção (e não é de excluir que sejam abrangidos outros candidatos a outros cargos), se façam debates em vários pontos do país, podendo as Direcções Regionais da ASJP ser um bom palco para o efeito. Tais debates permitiriam o aprofundamento da discussão interna e possibilitariam a todos os associados um conhecimento mais profundo dos candidatos e das suas capacidades, bem como questioná-los directamente sobre as propostas apresentadas nos programas eleitorais e outras questões que fossem do interesse dos juízes.
É que a experiência vem demonstrando que as reuniões, contactos, almoços e outro tipo de eventos organizados pelas diferentes listas concorrentes aos órgãos da ASJP, para dar a conhecer aos colegas as suas propostas, acabam por ser muito restritos. Em regra só comparece a tais eventos quem já está convencido das propostas e dos candidatos dessa lista. Haverá concerteza várias razões para que isso suceda, a que não serão alheias as simpatias e amizades que se foram criando e que, depois, não se quer dar a ideia de estarem a ser “atraiçoadas”, comparecendo a um evento organizado pelos elementos da lista concorrente. Ora aqueles debates possibilitariam, não só que os colegas comparecessem sem aqueles sentimentos de culpa, como permitiriam um melhor conhecimento dos candidatos e das suas propostas, quiçá desfazendo-se assim alguns preconceitos e pré-juízos que possam existir. Ganharíamos todos pelo aprofundamento do debate interno e ganharia o sentido democrático que qualquer votação encerra, já que um voto mais esclarecido é sempre um voto melhor.

Um Juiz com firmeza
Um Presidente da A.S.J.P. com estratégia e atitude
O inconformismo do agora candidato a Presidente da Associação dos Juízes já vem de longe. Na verdade, tive o privilégio de conhecer e privar com nosso colega António Martins logo nas primeiras reuniões de Juízes para a criação da revista jurídica “Sub Júdice”, ideia nascida das necessidades sentidas então de dar a conhecer a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça mais arrojada e inovadora, bem como das novas correntes jurídicas que por esse mundo fora estavam em discussão. Já lá vão muitos anos, como é sabido.
Desde logo lhe reconheci, entre as muitas das suas virtudes, uma tenacidade e firmeza ímpar em prol do que entende serem as condições sócio-profissionais do Juiz e uma expressiva clarividência sobre o modelo de organização judicial que Portugal devia conhecer.
Hoje, o mesmo António Martins, é candidato a Presidente da A.S.J.P., e foi com grande honra que dele recebi o convite para ser o mandatário nacional da primeira instância da lista que vai encabeçar nas eleições para os órgãos sociais daquela instituição.
Aceitei, porque tenho a certeza que se o António Martins for eleito Presidente da A.S.J.P. todos nós iremos ficar condignamente representados. Aceitei, porque importa ter a dirigir a A.S.J.P. alguém que tenha uma estratégia clara sobre a condução dos destinos dos Juízes portugueses e que em momento algum os conduza a um beco sem saída e jamais esqueça o que deve fazer no dia seguinte. Aceitei, porque nunca se viveu um momento tão difícil no que respeita à salvaguarda da independência dos Tribunais e do prestígio institucional dos Juízes que neles servem. Aceitei, porque sei que o António Martins jamais levará as lutas dos Juízes a confundirem-se com as lutas dos outros operadores judiciais ou chamará em seu socorro a C.G.T.P. ou a U.G.T.. Aceitei, porque sou dos que defende que os Juízes são titulares de Órgãos de Soberania e sei que também ele o defende, seja em que circunstância for.
Acredito, que é possível, com ele na presidência da A.S.J.P., os Juízes portugueses voltarem a ter uma estratégia, um rumo e uma atitude que nos dignifique e que defenda com firmeza a nossa independência, seja ela na vertente da verdadeira autonomia do Conselho Superior da Magistratura, seja ela na vertente da atribuição de verdadeiras condições de independência sócio-profissional a todos os Juízes.
Com o António Martins na Presidência da A.S.J.P. e com a equipa que o acompanha na lista, saberemos sempre que os caminhos que percorrermos terão uma saída, e que as nossas ideias merecerão serem ouvidas e compreendidas e que abandonaremos o estatuto de “pedintes” para ocupar o lugar que constitucionalmente nos está reservado.
A decisão, a tomar por todos os Juízes eleitores no próximo acto eleitoral para os órgãos sociais da A.S.J.P. é muito simples: Ou assumimos definitivamente a qualidade de Funcionários Judicias, ou lutaremos por sermos reconhecidos, estatutariamente, como titulares de Órgãos de Soberania.Duas listas aí estão para que a escolha seja possível.Eu, opto pela segunda via.
Raúl Esteves

Thursday, February 2


INTERVENÇÃO DE SUA EXCELÊNCIA
O PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
NA ABERTURA SOLENE DO VII CONGRESSO
DOS JUÍZES PORTUGUESES

Vale Covo (Praia do Carvoeiro), 24/Nov/2005

Senhor Presidente da República, Excelência,
Senhor Procurador-Geral da República,
Senhor Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses,
Senhores Congressistas,
Caros Colegas,
Minhas Senhoras e meus Senhores


Seja-me permitido começar por dirigir algumas palavras a Sua Excelência o Senhor Presidente da República, na abertura deste VII Congresso dos Juízes Portugueses. Ao manifestar o gosto de integrar este espaço de abertura e a honra de assim o partilhar, aproveito para salientar a importância de tão elevada presença, cuja intervenção se adivinha ser de inestimável valor.

Em já vários fóruns judiciários, o contributo esclarecido de Vossa Excelência, Senhor Presidente da República, tem apontado importantes pontos de reflexão para o sistema judicial. Estou certo, por isso, de que se justifica uma acrescida expectativa sobre o momento que estamos a atravessar.

Como Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, quero manifestar a Vossa Excelência o meu profundo reconhecimento por todas as deferências que gentilmente me tem dispensado.


Excelências,
Caros Colegas,
Minhas Senhoras e meus Senhores


Decorre este congresso em tempos conturbados para a Justiça, tempos de grande crispação e turbulência.

Fazer justiça é um exercício de suprema responsabilidade, mas é na aplicação dela que os cidadãos encontram a afirmação incondicional dos seus direitos, liberdades e garantias fundamentais. Por isso, o esforço conjugado de todos – dos chamados operadores judiciários – deve confluir para a realização de uma Justiça eficiente e exercida em tempo útil, só possível se o poder político não se demitir da função que lhe cabe e fornecer os meios materiais e humanos, bem como proceder a reformas profundas.

Espero que, do debate de opiniões neste Congresso, resultem ideias claras sobre os caminhos a trilhar. Ao debate – e, principalmente, às ideias que o têm alimentado – tem faltado virtuosismo.

O comportamento virtuoso, que resulta da obediência disciplinada aos ditames éticos e deontológicos, implica o empenho na realização material do escopo profissional e social de qualquer profissão ou actividade. Traduz, por isso, uma atitude perseverante no sentido da excelência.

As virtudes são sinal de excelência e, tal como acabo de afirmar, é essa excelência que tem faltado ao debate sobre a nossa Justiça. E a primeira virtude que tem faltado é uma virtude menor (devo reconhecê-lo), mas nem por isso menos virtude: a da delicadeza, ou da correcção.

É menor porque se refere ao cuidado formal de aparência (qualidade que pode revestir mesmo os actos condenáveis ou as decisões injustas). Trata-se todavia, de uma virtude introdutória. Todo o esforço no sentido da excelência se faz por aprendizagem.

O virtuosismo é sempre adquirido. Nenhuma virtude é natural. Pelo contrário, resulta de um esforço de adequação, de aprendizagem. E essa aprendizagem começa pela forma externa: fazendo aquilo que é ensinado (as boas maneiras).

É nessa medida que faz sentido a afirmação de que as boas maneiras precedem e conduzem às boas acções. Já Aristóteles dizia que «é praticando as acções justas que nos tornamos justos, praticando as acções moderadas que nos tornamos moderados e praticando acções corajosas que nos tornamos corajosos».

A aparência resultante da delicadeza, ou da correcção, é o princípio da adequação social (do respeito dos bons costumes) – a virtude ainda enquanto artifício, para se poder tornar num artefacto.

A ausência dessa virtude tem marcado o debate em volta das reformas que se tem pretendido introduzir recentemente na Justiça.

As acusações explícitas ou implícitas que se fizeram aos agentes da Justiça – e, em particular, aos juízes – para se justificar as medidas pretendidas, poderão quiçá justificar-se pela necessidade política de criar na opinião pública uma vontade de mudança. Mas foram incorrectas e indelicadas.

Os termos em que se colocaram as questões, menos do que justificar as acções, criaram bodes expiatórios, assim desautorizando qualquer reacção. O discurso ignorou a identificação dos problemas e o debate das soluções possíveis, para se dirigir aos culpados, àqueles a quem os privilégios retiravam qualquer credibilidade.

A segunda virtude que tem faltado é a da prudência. Venerada historicamente enquanto virtude cardeal, a prudência é hoje pouco valorizada (talvez pela sua base calculista ou pelo seu carácter instrumental ou não-absoluto).

A obrigação moral não parece dever variar segundo juízos de cautela – dir-se-á. Não obstante, conforme salienta Max Weber, essa ética de convicção encerra-nos num absolutismo de princípios que nos cega à humanidade, ao bom-senso ou à compaixão.

Não renunciando aos princípios, cabe a todo o homem – e, em especial, àqueles que assumem funções de liderança – ponderar as consequências previsíveis das suas acções, segundo uma ética de responsabilidade (ou de prudência).

Trata-se, pois, de determinar cautelosamente aquilo que é melhor. Ou seja: trata-se, a partir da verdade, do conhecimento e da razão, de deliberar correctamente e agir em consequência. É o bom-senso ao serviço da boa vontade, a inteligência dedicada à virtude. É a qualidade que garante que as outras virtudes produzem bons resultados – porque não chega amar a paz para ser pacífico, nem amar a Justiça para ser justo.

Noutra perspectiva – mais prática – dir-se-ia que a prudência é a virtude que evita que o inferno se encha das boas intenções (de actos animados pelas outras virtudes, portanto).

Parece desnecessário explicitar quanta imprudência tem caracterizado a apresentação, discussão e implementação das medidas dirigidas ao sector da Justiça.

Por eficiente que possa ter sido o discurso do privilégio, para agradar à opinião pública e captar o seu aplauso em benefício próprio, impunha-se antever que, ao tratar os titulares de um órgão de soberania como funcionários malcomportados (ameaçando-os com os correspondentes castigos ou medidas excepcionais), estava-se a empobrecer o Estado, a desacreditar o Direito e a fragilizar o Estado de Direito.

Faltou a lucidez e razoabilidade que impunha contenção. Não se antecipou. Não se previram os custos decorrentes dessa agressão.

Perdoar-me-ão, certamente, o tom moralista da minha análise. Menos do que a apreciação que faço, gostaria que as constatações servissem para nos inspirar – a nós, juízes – no sentido de evitarmos esses mesmos riscos, no debate que prossegue. Até porque é sabido como a falta de virtuosismo se alimenta dos seus próprios ecos.

Há uma norma que constitui um elemento-chave do regime e que enforma a própria Constituição: refiro-me ao respeito entre os órgãos que compõem a organização do Estado e que é uma via com dois sentidos. E tem de considerar-se que o seja em absoluto, para não pôr em causa o Estado de Direito.

Recusando sistematicamente dialogar de igual para igual – ou até meramente dialogar, porque logo se acrescentava não haver intenção de recuar – fingiu não perceber que até a disponibilidade dos juízes, por si só, era já uma abertura especial: o diálogo entre órgãos de soberania tem de fazer-se de igual para igual, sem dúvida, mas os seus titulares ocupam espaços bem distintos.

Note-se, por exemplo, que o poder político não se exerce por progressão em carreira profissional, como acontece no poder judicial; o poder político decide quanto paga e em que condições tem de exercer-se o poder judicial e não o inverso; o poder político arroga-se planear o faseamento com que tenciona dar resposta à crise, mas determina que o poder judicial responda com rapidez e a qualquer preço, sem lhe dar meios e condições para o fazer.

Pois bem: se ando a fazer a leitura correcta do nosso entendimento colectivo (e, como sempre, é muito mais o que nos une do que o que nos divide), os juízes já estão pouco interessados em discutir o problema das férias. Quando lá chegarmos, confrontados com os turnos e a impossibilidade de todos terem férias na mesma altura, verificaremos que quase tudo ficará como dantes. O que nós, juízes, exigimos é ser tratados como aquilo que somos e representamos. E que fique isto muito claro: não é um desejo negociável, mas uma exigência incontornável.

A partir deste ponto, a única discussão que nos interessa é sobre o que fazer a esta situação insustentável em que todos nos encontramos. E esperar que o poder executivo faça algo, ou que dê ao menos um sinal que estanque a desmotivação para trabalharmos muito para lá do que é exigível. Sem essa motivação, a pendência processual agrava-se.

Em rigor, a obrigação do poder político face ao poder judicial (também já o disse publicamente) é (foi sempre) a seguinte: prestigiá-lo e dar-lhe os meios. A sua obrigação é esta e coloca-se por esta mesma ordem. Porque, se a imensa falta de meios custa a sanar, convenhamos que pugnar pelo prestígio não custa dinheiro.

Só que a opção foi inversa: o actual poder executivo passou a dizer que os tribunais fecham três meses por ano, o que não é verdade; passou a declarar que os juízes precisam de trabalhar mais para ter a Justiça em dia, o que é inverdade; passou a afirmar que os juízes querem estar acima de tudo e de todos, o que não é verdade. Talvez outros o queiram…

Mais: como ouvimos há dias no Porto, com estupefacção geral, o Observatório Permanente da Justiça Portuguesa não chegou ainda a conclusão alguma sobre a contingentação processual; e (pasme-se!) está a trabalhar com dados estatísticos de 2001/2002.


Caros Colegas,
Minhas Senhoras e meus Senhores


A estratégia é elementar e o resultado é óbvio: o cidadão comum, o que está afastado dos princípios de Montesquieu e Beccaria e dos detalhes sobre a organização do Estado, foi escutando o poder executivo e acreditou. Mas tem sido intencionalmente enganado e é tempo de repor a verdade com todas as letras.

Venham pretensos opinadores e ouçam isto de vez: os juízes, como todos os cidadãos, não estão nem querem estar acima da lei; mas os juízes, como todos os titulares dos órgãos de soberania, não aceitam estar sem ser de igual para igual com os restantes órgãos de soberania.

Assiste-nos uma legitimidade constitucional de que nunca abdicaremos, porque ela garante a independência dos tribunais e, portanto, a qualidade da nossa Justiça. Esta poderá continuar morosa, com a falta de meios que o poder político não lhe atribui e a falta de reforma das leis processuais; poderá continuar defeituosa, porque ainda ninguém conseguiu acabar com uma justiça para ricos e outra justiça para pobres; e poderá continuar incerta, ao sabor da disposição dos políticos.

Mas que ninguém volte a dizer, de boa-fé, que os juízes não fazem uma justiça de qualidade. Ela é de grande, de muito grande qualidade. Os maus juízes, como todos os maus profissionais de todos os sectores, constituem uma reduzida minoria e são sancionados.

Já agora, que ninguém volte a dizer que os juízes nunca se preocuparam com mais e melhor Justiça para os cidadãos. Na recta final da minha carreira, nada encontrei tão cansativo e gasto como o poder judicial a perorar até à exaustão, junto do poder político, por mais e melhores meios, humanos e materiais, para obviar a injustiça que é não fazer justiça em tempo útil.

Haverá alguém, em seu perfeito juízo, que considere que todos os profissionais da mesma carreira têm toneladas de serviço em atraso por uma questão de gosto? Será razoável admitir que são todos desleixados ou mal-intencionados? Haverá nisto um prazer mórbido, endémico e generalizado que ainda não tenha sido alvo de um estudo psiquiátrico ou de um ensaio sociológico?

Sejamos sérios. Os juízes, como sempre fizeram, continuarão a pugnar por mais e melhor Justiça e, ao contrário do que alguns querem fazer crer, concordam com algumas das medidas que este poder político tem apresentado avulsas. Para corrigir o que está mal, ampliar o que parece bem e acrescentar o que se tem por desejável, bastará que queiram sentar-se connosco à mesma mesa e fazer reformas profundas, de modo a simplificar a tramitação processual e a agilizar o exercício de justiça.

São necessárias profundas reformas dos Códigos de Processo Civil e Penal, mas com efectiva participação dos magistrados e advogados, porque são os que, no seu trabalho diário, se confrontam com as mazelas do sistema e podem dar opiniões para as afastar ou, pelo menos, minorar.

Atrevo-me a garantir que todos teremos a ganhar, quando for possível aliar a capacidade política decisória à experiência judicial adquirida. Sobretudo, os cidadãos que mais precisam de um Estado de Direito que funcione.

Antes de culminar a minha carreira, gostaria de poder dizer que o actual poder político também acabou por perceber que, afinal, «a independência do poder judicial não é um favor concedido à classe dos juízes, é uma garantia dada à sociedade». Enquanto não se quiser aceitar esta afirmação tão simples e linear – que prestigia o poder judicial, prestigia todos os órgãos de soberania, prestigia o Estado e as instituições, prestigia o nosso país e a nossa cidadania – enquanto se puser em causa este princípio essencial que foi tão caro a José da Silva Carvalho, a Justiça afunda-se em processos e o País afunda-se sem justiça.

Excelências,
Caros Colegas

O tema oportuno deste Congresso e a agenda aliciante dos subtemas das intervenções hão-de garantir as melhores conclusões. Resta-me desejar que estes três dias correspondam ao sucesso que auguro para este evento e que resultem numa aproximação decisiva às justas expectativas que hoje se nos apresentam.

Tenho dito.

VII Congresso dos Juízes Portugueses, 24 de Novembro de 2005.

José Moura Nunes da Cruz
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça



RADICALISMO CONSTRUTIVO
Há tempos, no programa televisivo “Prós e Contras”, quando o presidente do SMMP disse existir da parte dos procuradores a convicção de que o governo está a levar a cabo uma ofensiva contra os tribunais em retaliação pelos acontecimentos do “processo da Casa Pia”, o ministro Alberto Costa contorceu-se, zangou-se, que não nada disso, que o governo apenas quer cumprir o seu programa e que essa insinuação era uma grande ofensa pessoal. Não sei se o pensamento dos juízes é igual ao dos procuradores, mas dou por mim a pensar: pode não ser, mas que parece, lá isso parece. Descontando o estilo arrogante e as ofensas intencionais aos juízes, de que não me interessa falar agora – de todos os quadrantes, incluindo do Presidente da República no Congresso da Justiça, já foram ditas as palavras necessárias –, objectivamente e sem fazer juízos sobre os estados de alma do governo, o que vejo é que se certas medidas legislativas forem usadas perversamente em todas as potencialidades, poderá estar aberto o caminho para o desmantelamento gradual dos mecanismos de independência dos tribunais e de autonomia do ministério público.
Só por isso aceito sair do conforto da sombra. Por ver que estamos num momento absolutamente crucial, em que alguns princípios basilares da arquitectura do sistema de justiça podem estar em causa, e por sentir que nem todos os juízes talvez se tenham apercebido do pode estar realmente em jogo.
Proponho um exercício de imaginação.
Imaginemos que amanhã, um partido qualquer com maioria parlamentar, ao abrigo da lei (já aprovada pelo governo), que permite à Assembleia da República definir as prioridades da política de investigação criminal, em vez de se guiar por critérios objectivos e racionais, se deixa determinar por razões de conveniência político-partidária e usa esse poder para intervir directamente nas investigações em curso, através da manipulação das prioridades, relegando habilidosamente as investigações menos convenientes para as listas de espera da prescrição. Pergunto: com esta lei poderiam ter avançado certas investigações criminais que ocorreram nos últimos três ou quatro anos? Dirão: ah… mas certamente a Assembleia da República nunca irá fazer isso! E eu respondo: pois, pois…
E nem me refiro aqui sequer ao facto de esta lei constituir o reconhecimento da incapacidade do Estado assegurar as funções essenciais da segurança colectiva e da repressão criminal. O governo, ciente incapacidade do Ministério Público e das polícias assegurarem a investigação de todos os crimes, em vez de os dotar dos meios necessários, optou por um modelo de prioridades que vai criar crimes de primeira, segunda e terceira, deixando sem protecção – ou ao menos sem a ilusão de protecção – certo tipo de vítimas, dando lugar ao surgimento de zonas de impunidade criminal ou cobertas por mecanismos de justiça penal privada.
Mas regressemos ao exercício.
Suponhamos também que chega aí um dia destes a tão falada “carreira plana”, estrategicamente acompanhada da alteração das regras de acesso dos tribunais superiores. No ambiente de secretismo em que as coisas se desenrolam, com os juízes intencionalmente postos à margem da discussão – ao que julgo saber nem mesmo o CSM é posto a par do que se projecta – ninguém pode estar tranquilo. Mas então, como dizia, imaginemos que a pretexto desse mistério chamado “carreira plana” vem disfarçado um sistema de acesso aos tribunais da relação (que hoje são os que interessam, pois aí é que se fixa definitivamente a matéria de facto e se determina o sentido da decisão) aberto a juristas externos mediante concurso público. Um sistema que vise perpetuar os juízes de carreira nos tribunais de primeira instância e reservar os tribunais superiores para juristas provindos das universidades, dos altos quadros da administração do Estado ou das carreiras político-partidárias. Quem ganhará com isso? Não certamente o valor da independência do poder judicial e dos tribunais. Dirão: ah… mas ninguém vai fazer isso, seria ir longe de mais! E eu respondo: sim, sim…
Suponhamos, ainda, que qualquer dia é aprovado o projecto do regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado (em fase de discussão pública: cfr. www.gplp.mj.pt). Um projecto que prevê, a par do alargamento da malha dos pressupostos da responsabilidade civil por actos ou decisões judiciais, o exercício obrigatório do direito de regresso contra o juiz, despoletado por iniciativa do ministro da justiça (sim, é verdade) ou mediante comunicação oficiosa da secretaria do tribunal onde se verificou a revogação da decisão e apenas condicionado a uma decisão positiva do CSM. Quando, curiosamente, ao contrário do que seria razoável e coerente, o mesmo projecto já não prevê o direito de regresso obrigatório nos casos de responsabilidade civil por acto legislativo ou político, por mais grosseiro que tenha sido o erro ou omissão que lhe deu origem – será por poder atingir membros do governo e deputados? Mas, estava a dizer, imaginemos que nas actuais condições de trabalho, que todos conhecemos, sem limitação do número de processos, sem assessores e outros meios materiais de apoio, sem poderes para gerir adequadamente a relação hierárquica de serviço com os funcionários judiciais, no meio dos milhares de processos, da burocracia e da papelada, um juiz (não um abstracto mas qualquer um de nós), por erro de avaliação dos pressupostos (não grosseiro, porque esse pressuposto também desaparece), profere uma decisão injustificada E, então, para complicar ainda mais, suponhamos que esse juiz por qualquer razão não é do agrado de alguém com poder. Fica sujeito a que lhe caia em cima a espada do ministro da justiça com uma acção de regresso para pagar uns milhares de euros – se os tiver, porque senão é a penhora do carro e da casa. Para onde irá o valor do julgamento em consciência e liberdade, essencial para a independência do juiz? A quem poderão servir juízes manietados por factores extra-processuais e condicionados por esta nova e insidiosa forma de controlo? Dirão: ah… mas isso era demais, nem o CSM ia nisso! E eu respondo: claro, claro, mas … e se fosse?
Bom, dito isto tudo, mesmo sem incluir aqui outras possibilidades de controlo que podem estar na calha, onde é que nos levou este exercício?
Por exagero, talvez aqui: à possibilidade de um partido com domínio do poder escolher os crimes que convém punir, de tutelar e gerir os polícias que o vão investigar, e os juízes depois que julguem como puderem, que isso é o menos, porque lá estarão os tais juristas na relação para dizer o que é que se provou e não provou, para no final, está bom de ver, se alguma coisa ainda assim tiver corrido mal, sempre restará a ameaçadora espada do ministro a pedir ao CSM que o deixe exercer o direito de regresso para castigar o juiz. Dirão que não, que a opinião pública percebia o truque e não deixava o poder político chegar tão longe. Será mesmo…? Qual opinião pública? Se for aquela para quem tão desastrosamente temos estado de costas voltadas, estamos conversados.
Alarmismo? Sim, um pouco. Mas intencional, para que se perceba exactamente onde estamos agora.
E a pergunta então é: o que fazer?
Aqui há tempos numa reunião de juízes em Coimbra para discutir a melhor resposta para essa pergunta – o que fazer agora? – quando se analisava se a actual direcção da ASJP tinha sido moderada ou radical, se tinha tido rumo ou navegado à deriva, se tinha mostrado alguma estratégia ou sido amadora, se tinha tratado os assuntos com competência ou com pouca habilidade, um colega nosso saiu-se com esta feliz expressão: a marca da próxima direcção tem de ser o “radicalismo construtivo”. O que remeteu imediatamente a discussão para duas orientações fundamentais. A próxima representação dos juízes tem de ser firme, sempre, e absolutamente intransigente no que for verdadeiramente essencial. Mas firmeza e intransigência não vazias de conteúdo nem inócuas nas consequências, baseadas, isso sim, numa linha de rumo clara, numa estratégia que perceba os objectivos e as dificuldades e numa nova atitude, que permita elaborar uma mensagem construtiva em que o cidadão se reconheça, com fundamentos sólidos, alicerçados em estudos e propostas consistentes, e numa actuação formal e substancialmente irrepreensíveis, com a visibilidade social adequada. Já todos percebemos que não basta falar grosso e dar murros na mesa a toda a hora; primeiro é preciso ter alguma coisa para dizer e haver quem oiça; e depois, então sim, quando for preciso, dizê-lo com a contundência que for necessária, com a força da razão: Para que os murros na mesa não se esgotem no barulho que fazem.
Dito o que se deve fazer, pergunto também: quem o pode fazer?
Não tenho qualquer dúvida sobre a boa fé, o esforço sério e a vontade positiva dos membros que integram a actual direcção da ASJP. E de que, precisamente por terem enfrentado no seu mandato uma conjuntura particularmente difícil, devem ser credores da nossa compreensão e simpatia. Mas, dito isto com sinceridade, não posso, num balanço global, analisando com distanciamento e objectividade os resultados, não posso, com a mesma franqueza, deixar de dizer que teria sido desejável, necessário e possível, fazer mais e melhor.
Reconheço que ao nível da imagem e do carisma, numa primeira fase, na ebulição do chamado “processo da Casa Pia”, a actuação pública do presidente da direcção se pautou, no essencial, pela correcção formal e substancial. Digo-o a bem da verdade, no meio da imensa insegurança sentida pelo cidadão, provocada pelo permanente confronto mediático dos diversos poderes e protagonistas de interesses desse processo, que chegou a ser malcriado e violento, as intervenções do presidente da associação dos juízes apareceram várias vezes como factor de estabilidade e credibilidade da justiça.
Também, no plano da reorganização administrativa e logística, merece igualmente destaque positivo o esforço da direcção na aquisição de uma sede nacional própria. Aplauso, no entanto, tenho de dizê-lo também, muito ofuscado pela política seguida por esta direcção, de esvaziamento da importância das direcções regionais e de centralização de todo o poder associativo em Lisboa, que, para além do inevitável estreitamento dos canais de discussão e debate, levou a que fossem completamente descuradas as iniciativas e o funcionamento das direcções regionais. A regional norte, com um património imobiliário cuja valorização foi uma vez mais adiada, perdeu a vitalidade e identidade de outrora, tornando-se numa entidade moribunda, com encargos de funcionamento sem qualquer retorno visível. E a regional sul, cujo secretário aliás se demitiu em ruptura com a direcção com que tinha sido eleito, não obstante ter conseguido montar uma sede, acabou por se assumir apenas como um peso inconsequente, pois para além da contratação de mais um funcionário administrativo, não se vê que tivesse desenvolvido qualquer actividade muito relevante.
E que dizer do completo abandono a que a direcção votou o problema nuclear da contingentação? Uma medida que os juízes reclamam com razão há mais de vinte anos, não por razões de conforto pessoal mas sim por se tratar de uma ferramenta de gestão essencial para dar racionalidade à organização global dos tribunais, dos recursos humanos e das pendências, em todas as suas vertentes – de tão evidente que é esta necessidade, até é embaraçante ter de a repetir a toda a hora. A ASJP nem sequer foi capaz ao longo dos anos de dar o devido enquadramento àquele grupo de jovens juízes que desde o congresso de Aveiro vêm tentando, com energia mas sem êxito, ver estudado e aprovado um projecto que vincule o CSM à responsabilidade de o aprovar e executar. O que dá razão ao que noutro lugar já escrevi, que todos falam da contingentação nos programas mas alguns verdadeiramente, chegados ao poder, não querem saber disso para nada. Ou então não sabem como fazê-lo. O que em qualquer caso é inconcebível.
No mais, numa linha de continuidade as direcções anteriores, faltou neste mandato a definição de uma estratégia e de um rumo consistente e permanentemente orientador da acção e das palavras, que ponha as pessoas do nosso lado e não contra nós. Deu-se prevalência à vertente sindicalista, no seu estilo mais duro. Assim, com uma opinião pública tão adversa às causas dos juízes e sem a adesão mínima dos comentadores políticos e jornalísticos, não é de estranhar que a direcção não tivesse podido enfrentar adequadamente a recente ofensiva governamental sobre os juízes e os tribunais.
Começou por não perceber que o problema da redução das férias judiciais era um engodo. Em vez de desvalorizar o assunto e esvaziar imediatamente o balão da polémica, meteu-se mal no problema e acabou por deixar definitivamente na opinião pública a ideia de que o que os juízes queriam era manter privilégios. A partir daí, formada essa ideia, bem tentou o presidente da direcção, nas sucessivas oportunidades televisivas que teve, inverter o discurso mas já não foi capaz.
Nem se viu ou ouviu algo de especialmente relevante sobre o congelamento da progressão retributiva que afectou em exclusivo os juízes mais novos. Quando a questão merecia ter ser estudada, particularmente no que respeita à situação indigna dos juízes estagiários que foram nomeados juízes de direito e que (erradamente, diga-se) viram também congelado o acesso ao estatuto remuneratório correspondente. Se não pudesse ou soubesse fazer mais, ao menos tivesse copiado o apoio que o SMMP deu aos procuradores afectados, na instauração de acções judiciais contra o Estado para recuperação desses vencimentos.
Depois veio a privação do acesso aos serviços sociais do ministério da justiça. Passou a ser evidente a necessidade de uma reacção colectiva com impacto e força equivalente à gravidade da soma das medidas avulsas tomadas contra os juízes. Sobretudo porque as atitudes de prepotência do governo foram a gota de água que fez transbordar o copo da insatisfação dos juízes, acumulada durante muitos anos, e da sua impotência para vencer as carências mais básicas que enfrentam no desempenho quotidiano da função. Só que a greve começou mal e acabou pior. O único aspecto em que foi genuinamente positiva foi na forma como decorreu, com a adesão em massa dos juízes, que deu um sinal de unidade e força, capaz de impor ao governo um compasso de espera. Não, obviamente, uma derrota, longe disso, apenas um recuo táctico para reunir força e voltar à carga, com mais armamento, mas agora com os juízes mais indefesos.
O primeiro erro de avaliação foi o de associar as reivindicações dos juízes às lutas sindicais (e partidárias) da CGTP e da UGT. Tenho 12 anos de juiz e nunca pensei ser possível um dia ver os juízes em assembleia-geral a bater palmas às intervenções dos dirigentes das centrais sindicais. Não que tenha alguma coisa contra os sindicatos, o que entendo – e para mim isso é evidente – é que as reivindicações profissionais dos juízes ficam sempre menorizadas quando, por mais justas que sejam, aparecem diluídas no caldeirão das guerras político-sindicais, pois perde-se aí, para a opinião pública, o seu referencial mais importante e identificador, que é a sua natureza instrumental em relação à essência da função judicial, enquanto poder soberano do Estado. Quem é que alguma vez poderia vir a acreditar que uma greve de juízes apadrinhada pelas centrais sindicais tinha a ver com a independência dos tribunais?
Depois, novo erro, o “frentismo sindical” com as outras profissões judiciárias. Então a greve dos juízes (a que aderi, embora com reservas quanto à forma e à oportunidade) teve as mesmas razões da greve dos procuradores? Dos funcionários judiciais? Dos funcionários da investigação policial? E dos funcionários dos registos? Há algum elemento unificador de interesses tão diversos, para além do ataque político ao governo? É evidente que não. É claro que respeito as razões de todas as greves, mas, com franqueza eu estou noutro lado, as minhas razões são outras. Coloco-me, enquanto juiz, num plano institucional diferente desses profissionais, o que não significa, de todo, menor respeito pelo seu estatuto e compreensão pelas suas aspirações. Se fiz greve para preservar a independência do poder judicial, como explicar então que a tenha feito ao lado dos procuradores, que legitimamente aspiram, por exemplo, à interpenetração das carreiras nos tribunais da relação, quando eu considero que essa medida é contrária ao sistema de justiça que defendo? E como explicar, também, que a tenha feito ao lado dos funcionários judiciais, quando eles, por exemplo, são contra o restabelecimento dos mecanismos de autoridade hierárquica, funcional e disciplinar dos juízes nos tribunais, e eu considero que isso é fundamental para a sua boa organização e administração? Tudo a precisar ter sido melhor pensado, concebido e explicado. Em abono da credibilidade que se procura com o discurso da soberania, que de outro modo mais não é do que um conjunto de palavras ocas.
Depois, apareceu aquela recomendação aos juízes para não comunicarem a adesão à greve a ninguém. E o ministro da justiça a dizer que só se pronunciava sobre a percentagem de adesão depois de ver as folhas do vencimento. Estava-se mesmo a ver a rasteira. A rasteira em que, por causa disso, muitos caíram, ao ponto de termos podido ficar todos a fazer figura de mentirosos (dizendo que o nível de adesão foi superior ao real) ou, ainda pior, de sonsos (a ver se tínhamos o benefício da greve sem o custo da perda do vencimento). O que em qualquer caso é triste figura.
E então, passado tudo isto, a greve, essa medida tão excepcional, tão extrema, para que serviu afinal? O que é que a direcção da ASJP fez depois? Que consequências tirou dela? Ficámos todos a olhar uns para os outros, uns de mãos nos bolsos, outros a assobiar para o ar, e outros a raspar o pé, mas todos sem saber o que fazer. Fomos à guerra e gastámos as munições quase todas aos primeiros fogachos. E eis como, vivendo de tanto amadorismo, aqui estamos todos agora, quietinhos, a ver se passamos despercebidos, à espera sabe-se lá de quê…
A questão a que regresso é pois esta: à beira de eleições para os órgãos da ASJP, a quem confiar o destino da nossa representação nos próximos três anos. Só há duas atitudes possíveis. Quem preferir o amadorismo, a ausência de rumo, a falta de estratégia, o voluntarismo inconsequente, quem acreditar que os mesmos protagonistas têm espaço de manobra para fazer melhor, quem quiser que tudo fique na mesma mais três anos, pois bem, deve apostar na continuidade, que alguém decerto se encarregará de assegurar. Assim como assim já estamos nisso há tanto tempo que não deve vir daí grande mal. Por mim estou do outro lado. Do lado dos que querem apostar numa mudança, não apenas de pessoas (o que já não é pouco), mas sobretudo de ideias e métodos. Numa mudança cuja credibilidade se sustente numa liderança competente e na consistência de um discurso que vem fazendo o seu caminho há vários anos. Numa liderança que seja capaz de mobilizar os juízes para definir de um rumo, pensar uma estratégia e adoptar uma nova atitude que permita garantir ao cidadão que a nossa causa é também a dele, assim o levando a aderir sem reservas à nossa causa primeira e última, que é a defesa intransigente da independência dos tribunais e dos juízes.
Estou consciente das dificuldades. A inércia é sempre o obstáculo mais difícil de remover. Criou-se o mito de que nestes três anos houve uma melhoria da imagem da ASJP. Eu acho que não é verdade. Aceito que o presidente da direcção, por causa do seu estilo pessoal e da sua permanente exposição mediática, possa ter ficado com melhor imagem junto dos seus pares – fenómeno apenas com importância interna – mas não vejo como possa negar-se, ao mesmo tempo, que esse aumento de visibilidade dos juízes deixou a descoberto a ausência de substância do seu discurso. O que acabou por causar mais estragos na sua imagem colectiva, ao nível na opinião pública – que é verdadeiramente o que pode fazer a diferença.
Os dados da escolha estão na mesa. Cada um que assuma as suas responsabilidades.

Manuel Henrique Ramos Soares
A NÃO CONTAGEM DE TEMPO DE SERVIÇO
E OS MAGISTRADOS DO XXI CURSO NORMAL DE FORMAÇÃO DO CEJ

Como é por todos sabido, a Lei n.º 43/2005, de 29 de Agosto estabeleceu a não contagem do tempo de serviço para efeitos de progressão nas carreiras e o congelamento do montante de todos os suplementos remuneratórios de todos os funcionários, agentes e demais servidores do Estado entre a data da sua entrada em vigor (30/08/2005) e o dia 31 de Dezembro de 2006.
Por força do art.º 3.º da referida Lei, as suas disposições são aplicáveis aos magistrados judiciais e do Ministério Público.
Para além dos motivos que são comuns a todos os magistrados para a contestação da aplicação do diploma em causa às carreiras das magistraturas judicial e do Ministério Público, os juízes e procuradores‑adjuntos oriundos do XXI Curso Normal de Formação do Centro de Estudos Judiciários e que tomaram posse no passado mês de Setembro de 2005 têm razões acrescidas para se sentirem indignados pela aplicação da não contagem do tempo de serviço ao seu caso específico. O que se pretende com este artigo é apenas contribuir para que todos os colegas tomem conhecimento de tais razões que, em nosso entender, contendem em última análise com a própria dignidade das funções nas quais fomos recentemente investidos.
O XXI Curso teve o seu início no dia 15 de Setembro de 2002 e foi dos poucos cursos desde a entrada em vigor do actual modelo de formação de magistrados a não ter sido encurtado. Assim, cumprimos os seis meses iniciais de formação no CEJ, após o que estivemos colocados por um ano como auditores de justiça nas comarcas (seis meses na magistratura judicial e seis meses na magistratura do Ministério Público), tendo regressado posteriormente ao CEJ por três meses. Após este período, foi feita a graduação final de todos os auditores e a escolha por cada um da magistratura na qual pretendia ingressar, tendo todos tomado posse em 15 de Setembro de 2004 como juízes e procuradores‑adjuntos estagiários. Estivemos colocados até 15 de Julho de 2005 nas respectivas comarcas de estágio e fomos colocados no movimento judicial ordinário de Julho de 2005 em comarcas de primeiro acesso (a maioria) ou como auxiliares em comarcas de acesso final, aguardando colocação em primeiro acesso. Uma vez que a Lei Orgânica do Centro de Estudos Judiciários (LOCEJ – aprovada pela Lei n.º 16/98, de 8 de Abril)) prevê que o tempo de formação no CEJ termina a 15 de Julho do ano de estágio (art.º 69.º, n.º 1) e o movimento ordinário apenas produziria efeitos a partir de 15 de Setembro, fomos nomeados juízes auxiliares de 15 de Julho até à publicação do movimento ordinário, nas comarcas onde tínhamos efectuado o estágio.
Enquanto auditores, auferíamos uma bolsa de estudos equivalente a 50% do índice 100 da escala indiciária das magistraturas, nos termos do art.º 54.º, n.º 1 da LOCEJ. A partir do momento em que tomámos posse como estagiários, passamos a auferir a título de vencimento o correspondente ao índice 100, pois é este o índice de ingresso.
De acordo com a tabela de remuneração dos magistrados, após três anos de serviço, os magistrados passam a ser remunerados pelo índice 135. Este limite temporal de três anos não foi estabelecido pelo legislador por acaso: conjugando a tabela de remuneração com a LOCEJ, os três anos coincidem com a passagem de estagiário a efectivo e o início de funções qualitativamente (e também quantitativamente, diga­‑se) distintas.
Nos termos do art.º 70.º, n.º 1 da LOCEJ, durante o regime de estágio os magistrados exercem com a assistência de formadores, mas sob responsabilidade própria, as funções inerentes à magistratura, com os respectivos direitos, deveres e incompatibilidades, devendo (nos termos dos n.os 2 e 3 da mesma norma) o Conselho Superior da Magistratura recolher elementos sobre a idoneidade, mérito e desempenho dos magistrados em regime de estágio, podendo determinar uma inspecção extraordinária caso os elementos recolhidos ponham em dúvida a adequação do estagiário ao exercício de funções.
A partir do momento em que tomámos posse como juízes de direito (e procuradores‑adjuntos, no caso dos colegas que optaram pelo Ministério Público), deixámos de estar assistidos por formadores, passando a exercer autonomamente as funções próprias de magistrados, nas respectivas comarcas, sendo titulares dos juízos ou tribunais nos quais fomos colocados e dos respectivos processos. Tratou‑se não de uma mera progressão automática, apenas dependente do decurso do tempo, mas sim de uma verdadeira promoção, na medida em que para tomarmos posse como efectivos tivemos de ser necessariamente objecto de uma avaliação de mérito que nos permitiu o ingresso definitivo na carreira de magistrados.
Ora, não obstante tal promoção, os nossos vencimentos continuaram (e continuam) a ser processados pelo índice 100 da tabela remuneratória (como se continuássemos em regime de estágio) pois a Lei n.º 43/2005, de 29 de Agosto tem sido interpretada no sentido de abranger a nossa passagem de estagiários a efectivos. Nenhuma alteração houve no vencimento, apesar de termos tomado posse como magistrados em efectividade de funções.
Indignados com a situação, dirigimos requerimentos aos Ex.mos Presidentes dos Tribunais da Relação solicitando o processamento do vencimento pelo índice 135, argumentando, em síntese, que:
· a aplicação dos sucessivos índices da escala anexa ao Estatuto dos Magistrados Judiciais não traduz, por si só, qualquer "progressão na carreira" (sendo apenas para esse efeito que, de acordo com o artigo 1.º da Lei n.º 43/2005, de 29 de Agosto, não é contado o tempo de serviço), mas apenas uma evolução remuneratória;
· a "progressão na carreira" dos magistrados judiciais não depende apenas do decurso do tempo, mas também da avaliação periódica efectuada pelas inspecções do Conselho Superior da Magistratura;
· finalmente, e mais importante, no caso nos magistrados que perfizeram três anos de serviço, tal termo coincide com o final do regime de estágio e o início de funções qualitativamente diversas, em tribunais de primeira colocação.
As respostas que obtivemos foram díspares: algumas relações indeferiram os requerimentos, outras reencaminharam-nos para a Direcção‑Geral da Administração da Justiça e outras ainda para o Conselho Superior da Magistratura (CSM).
Dirigimos os mesmos requerimentos à DGAJ, tendo recebido uma notificação em Novembro de 2005 dando‑nos conta de que foram remetidos à Direcção de Serviços Jurídicos para análise e parecer. Até ao momento ainda não fomos notificados de qualquer deliberação.
Entretanto, o CSM, na sequência dos requerimentos que lhe foram remetidos por alguns dos Tribunais da Relação, aprovou uma deliberação na sessão Plenária Ordinária de 06/12/2005 dando total razão à posição por nós defendida e comunicando o teor de tal deliberação (e do parecer no qual se apoia) à DGAJ e aos Ex.mos Presidentes das cinco relações.
Aguardamos agora que a DGAJ tome uma posição (expressa ou tacitamente) de modo a podermos (caso a mesma nos seja desfavorável) recorrer aos tribunais.

Além de todos os motivos que levam os magistrados a insurgir‑se contra a não contagem do tempo de serviço nas suas carreiras, no nosso caso sentimos a não contagem como uma profunda desconsideração pelas funções de magistrado e pela dignidade que é devida ao exercício da judicatura. Estamos colocados em efectividade de funções nas comarcas, sob a nossa responsabilidade e no exercício de competências próprias enquanto titulares de tribunais e juízos, e continuamos a ser tratados como estagiários, como se nos mantivéssemos junto dos nossos formadores, sob a sua alçada.
Ter juízes e procuradores em efectividade de funções a receber como simples estagiários é desonroso não só para os directamente afectados, mas também (e especialmente) para toda a magistratura, na medida em que confirma a quase total desconsideração que o poder executivo tem demonstrado para com o poder judicial. É bom que todos estejamos cientes de casos como este. Espero que este artigo tenha contribuído para que todos fiquem um pouco mais esclarecidos quanto a esta situação.


Filipe César Vilarinho Marques
Juiz de Direito no Tribunal Judicial da Comarca de Melgaço
A FÁBULA DA EQUIPA JUDICIAL
ARTIGO DE OPINIÃO DE
AFONSO CABRAL DE ANDRADE
JUIZ DE DIREITO

Uma vez que vivemos em plena Futebolândia, e que acredito na regra segundo a qual “se não podes vencê-los junta-te a eles”, proponho-me fazer uma análise esférico-jurídica do que se está a passar na Justiça, contando uma pequena fábula.
A Equipa Judicial foi construída a pensar na qualidade e tendo a excelência como objectivo, e por isso procurou-se seleccionar os melhores elementos para disputar um campeonato extremamente duro e exigente, mas prestigiado.
Assim se fez, e os jogos começaram.
Ao fim das primeiras jornadas tornou-se evidente que algo não estava bem. Os jogadores eram realmente muito bons e davam o seu melhor, mas mesmo assim a equipa era sistematicamente derrotada, e o que é pior, goleada.
Muito se discutiu sobre as causas, e nos balneários ocorriam acaloradas discussões entre jogadores e treinador para tentar entender o porquê dos desaires. Mas para os espectadores a resposta era óbvia: a equipa só tinha 6 jogadores, que embora muito bons tecnicamente, não podiam fazer milagres e neutralizar todas as jogadas dos adversários. E assim, jogo após jogo, jornada após jornada, fazendo alinhar sempre e só 6 jogadores, contra os 11 das equipas adversárias, as derrotas começaram a fazer parte da normalidade para esta equipa. Já não se estranhavam, e já nem sequer incomodavam nem afectavam o brio e o prestígio dos jogadores e do treinador. É que estes desenvolveram entre si uma filosofia pela qual regiam toda a sua actuação, e que consistia em ignorar olimpicamente os resultados dos jogos, e concentrar toda a atenção na postura e na atitude da equipa. Em vez do golo, procurava-se a exibição. Em vez da eficácia, valorizava-se o esforço.
Cada vez que a equipa regressava ao balneário vergada com mais uma pesada derrota, em vez do desalento e da tristeza, verificava-se um fenómeno de congratulação interna pelo esforço, zelo e dedicação demonstrados em campo. Eram valorizados os jogadores mais esforçados e penalizados os que não davam o seu máximo. O lema do Treinador era sempre “mais esforço, mais empenho, mais sacrifício”.
Assim se foi passando o tempo.
E em circuito fechado, a equipa encontrou a solução para conviver com as sucessivas derrotas humilhantes que sofria, através do elogio e da exaltação do empenho e do esforço postos em jogo. E realmente assim era. Os jogadores interiorizaram que a reputação da equipa poderia ser defendida através do empenho e do esforço individual de cada um, desvalorizando os sucessivos enxovalhos no marcador.
Porém, esta situação algo esquizofrénica não podia durar.
E os primeiros sinais de mudança vieram quando as sucessivas derrotas trouxeram consigo a progressiva destruição da reputação da equipa. De respeitados, os jogadores passaram a ser olhados de lado, tratados com escárnio e menosprezo. Não só pelos adversários, mas também pelos próprios sócios e adeptos.
Começaram então a perceber que todo o seu esforço não lhes serviu para nada. Nem a eles nem à equipa. Antes pelo contrário.
Alguns jogadores mais cansados com a situação chegaram a propor, para defesa do prestígio do clube, que a equipa se recusasse a jogar enquanto as regras do jogo não fossem alteradas: propunham por exemplo a redução do tempo de jogo para metade, a diminuição do tamanho do campo, ou do tamanho da sua baliza.
Os dirigentes da SAD recusaram sempre todas as propostas. Diziam que o orçamento da equipa era aquele que era possível, não queriam alterar as regras mas também não explicavam porquê. O Treinador, apesar de se mostrar preocupado com a reputação da equipa e com as sucessivas goleadas sofridas, continuava de forma autista a querer fazer o melhor com os meios de que dispunha, não vendo o óbvio. Continuava a pregar “mais esforço, mais empenho, mais sacrifício”.
Os jogadores, cada vez mais incomodados com a situação, continuavam a fazer o seu melhor em campo mas os resultados lá estavam, sempre pesados, sempre humilhantes. A nenhum deles ocorreu mudar de equipa, pois o seu coração sempre esteve e sempre estaria naquela.
E nesta situação de incómodo constante se passaram mais uns tempos.
O próximo sinal de mudança veio da Direcção da SAD. Os jogadores nem queriam acreditar quando da direcção da SAD começaram a sair de forma mais ou menos indirecta e velada críticas à sua actuação. Os comunicados saídos daquele órgão para a imprensa, declinando qualquer responsabilidade própria pela situação alcançada, passaram a fazer recair sobre os jogadores a culpa da má classificação da equipa. E consequentemente, foi decidido reduzir as férias dos jogadores, pois se trabalhassem mais os resultados melhorariam. E como se isso não bastasse, chegou a falar-se em reduzir os ordenados dos jogadores. Os adeptos aplaudiam entusiasticamente esta nova atitude dura e justa da Direcção, e era frequente, nos cafés e tabernas, ouvir frases como: “não fazem nada e ainda querem ganhar muito! Até ganham de mais para os resultados que conseguem...”, “nem deviam ter férias”! Perante esta nova situação a atitude dos jogadores começou finalmente a mudar.
Cansados, desprestigiados, desmotivados, sentindo que apesar de terem dado o seu melhor ainda estavam a ser alvo de medidas retaliatórias, a sua disponibilidade para continuar a jogar com aquelas regras começou a ser cada vez menor, e o esforço posto em campo foi naturalmente diminuindo.
Os resultados pioraram sensivelmente.
O Treinador, esse, continuou a berrar para dentro do campo o seu slogan “mais esforço, mais empenho, mais sacrifício”.
Nesta espiral de ausência de bons resultados, cansaço, desmotivação, adversários difíceis, retaliação sobre os jogadores, desprestígio público da equipa, manutenção das mesmas regras do jogo, a equipa foi-se afundando cada vez mais.
E mais.
E mais.
Até que, um certo dia, todos os olhos se voltaram para o Treinador.

O PRIMEIRO PASSO

Comunicação ao VII Congresso dos Juízes Portugueses
Carvoeiro, 25 de Novembro de 2005


Estou preocupada! Quando relembro o último congresso em Aveiro, em que havia duas salas com apresentação de comunicações em simultâneo não posso deixar de reparar que a participação activa no presente é muito pequena. Demasiado pequena para a época que vivemos. Em Aveiro os juízes não tinham acabado de fazer uma greve. Foi agora, apenas há alguns dias que a fizeram! Ninguém diria! Com excepção para as corajosas e estimulantes palavras que generosamente ontem nos foram oferecidas pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e não descurando naturalmente da pertinência e valor das anteriores apresentações, NÃO VEJO CHAMA! Por isso, antes do mais permitam-me que dirija especialmente ao Sr. Conselheiro Nunes da Cruz o meu sincero: MUITO OBRIGADA!
Hesitei se deveria vir a este congresso. O privilégio de me encontrar dispensada de serviço – este, sim, um privilégio – nem por um momento me atenuou a vontade de estar presente. O problema era que nem tudo o que tinha para dizer me parecia constituir opinião muito popular no seio da classe. Uma crítica dirigida aos juízes nos últimos tempos acabaria por revelar-se determinante: “não se ouvem as nossas vozes quando está em causa a justiça. Só nos fazemos ouvir na defesa das nossas regalias.”
Não é verdade! Só uma deliberada falta de atenção às publicações que integram textos da autoria de juízes pode explicar a injustiça daquela censura quando feita por juristas. A Justiça não interessa, todavia, apenas a juristas e essa realidade, sim, parece que nós juízes temos esquecido com demasiada frequência. Com justiça, ou sem ela, a verdade é que as intervenções públicas por parte dos juízes de denúncia às debilidades do nosso sistema de Justiça não foram suficientes. E da nossa passividade cresceu o tom exterior das críticas. Do nosso silêncio para as verdadeiras questões que ferem a Justiça nasceu a injustiça da maior parte dos defeitos que nos apontam. A presença neste congresso de muitos juízes - que sei serem também bastante críticos em relação ao actual estado das coisas - sem que até ao momento tenham tido qualquer intervenção deixa-me por isso especialmente preocupada. Em particular no caso dos mais jovens. Onde anda, por exemplo, o entusiasmo na reivindicação da contingentação tão firmemente apresentada no congresso de Aveiro? Pelo facto de não ter alcançado acolhimento do legislador deixou de ser prioridade para os juízes? Foi ultrapassada por outros temas mais «quentes»?
O recente contacto estabelecido com a realidade dos tribunais estrangeiros, e especialmente na Alemanha - para nós juristas portugueses, referência de excelência -, proporcionou-me uma nova perspectiva de algumas questões que ultimamente têm estado na ordem do dia dos juízes portugueses. Tive o privilégio – mais um – de visitar, durante este mês, tribunais de Brasília e de Munique em pleno funcionamento. Vir aqui hoje e ignorar as impressões que ali colhi seria desonestidade que nenhum juiz aceitaria.
A verdade é que regressei com uma sensibilidade diferente à prioridade dada a algumas das nossas reivindicações associativas. Não somos nós um país visivelmente menos rico do que a Alemanha, apesar daquilo que por lá se designa de “estado de pobreza” que os atingiu? Pois bem, na Baviera os juízes auferem vencimentos semelhantes aos dos juízes portugueses. Os tribunais mantêm-se em plenas funções durante todo o ano apesar de os juízes terem naturalmente direito a férias e à escolha do período em que as gozam. Mas o que mais me impressionou nos juízes alemães foi a simplicidade (quase «franciscana») dos seus gabinetes onde nem a presença de um computador destoa! Não têm «tribunal XXI»! Mas, em contrapartida, não se queixam de excesso de trabalho. Regressam a horas normais a casa e sentem-se respeitados pela população e governo! Quando lhes perguntava se admitiam fazer greve por falta de condições de trabalho, respondiam: impensável! Desde logo porque o seu estatuto de equiparados a funcionários não lhes confere o direito à greve. Depois, nenhum alemão compreenderia uma tal atitude por parte dos seus juízes e, por fim, porque não sentem falta de condições de trabalho.
Não vim aqui discutir opções do passado, ainda que recente, cuja explicação só consigo encontrar na anterior humilhação pública a que os juízes portugueses foram sujeitos. De resto, será provavelmente muito pouco o que nos une aos juízes alemães, para além do facto de exercermos funções em estados membros de uma mesma União cujo principal motor económico é precisamente a Alemanha.
Por seu lado, com os juízes federais brasileiros não há comparação possível. Bastará lembrar que cada um tem veículo distribuído, motorista e secretariado próprio e por si escolhido, para percebermos que estamos noutro continente! Não admira, pois, que em S. Paulo já haja transcrição simultânea como aqui ontem foi anunciado. Eu acrescento: em Brasília, dentro dos próprios tribunais há estúdios de televisão e rádio e o “TV Justiça”, um canal de televisão, transmite informação sobre a justiça 24 horas por dia.
Não sei qual a preferência de cada um dos presentes, nem é minha intenção apontar aqui para qualquer modelo. A verdade é que no regresso do meu estágio no estrangeiro não pude evitar que me viesse à memória a passagem de Alain Minc, no seu polémico livro “em Nome da Lei”: “onde o Estado é fraco, até mesmo corrupto, a pressão da sociedade conduziu a uma justiça independente mas corporativa, como em Itália; quando a democracia é triunfante e a moral pública sólida, o poder político gera uma magistratura cujos membros ninguém imaginaria que uma vez instalados não fossem independentes.”
As razões do meu inconformismo com o actual estado das coisas na Justiça portuguesa não são pequenas, mas o tempo é escasso e, por isso, elegi apenas dois tópicos, por se me afigurarem como especialmente justificadores da proposta que no final aqui gostaria de deixar. Ela traduz a minha visão das especiais exigências reservadas ao futuro do associativismo dos juízes. Poderão não obter a vossa concordância, ESTIMADOS COLEGAS, Senhores Conselheiros e Desembargadores ainda presentes, mas ao menos que obtenham a vossa DISCUSSÃO!
Em primeiro lugar, refiro-me à nossa passividade ao longo de anos perante a consciência de – não digo inúmeras, mas em qualquer caso excessivas - práticas não conformes à melhor garantia dos direitos dos cidadãos que proliferam pelos tribunais. Poderia exemplificar com os julgamentos no gabinete, as marcações de variadas diligências para a mesma hora e tantas outras práticas de todos conhecidas. Sempre pelas mais piedosas razões de permitir que o sistema funcione, mas igualmente em não menor erro sobre as nossas responsabilidades: fazer justiça, e não gerir o número de processos pendentes. Poderia também optar por outros temas mais complexos como o referente à construção da nossa jurisprudência já que é de cada vez mais difícil percebê-la no meio de decisões e contra-decisões que se negam a si mesmas!
Mas, porque nos últimos anos me dediquei exclusivamente à jurisdição da instrução criminal, deixem-me que melhor ilustre o que pretendo significar recorrendo a exemplos dessa área. A edição do jornal Público do último domingo trazia um artigo com um longo título: “PGR pede ao Governo alterações urgentes sobre segredo de justiça – reveladas novas escutas sobre substituição de Souto Moura. Alberto Costa avança que revisão do Código de Processo Penal será apresentada no início de 2006”. Nesse artigo, liam-se as seguintes palavras atribuídas ao primeiro-ministro: “O Governo não se ocupa de escutas telefónicas, porque essa é matéria das autoridades policiais” Ainda o mesmo artigo atribuía ao deputado do CDS Nuno Melo a seguinte “acusação”: “Uma polícia que escuta políticos por conversas de natureza política é uma polícia política e não uma polícia de investigação”. O “Expresso” do mesmo fim-de-semana revelava já a admiração dos políticos pela forma desabrida como em Portugal se avança para buscas.
Mas, qual é a surpresa? Não denunciaram já, e de há muito, vários juízes a falta de condições para cumprimento do controlo legal das intercepções telefónicas nos termos indicados pela lei? Porque razão continuam os terminais de intercepção na exclusiva disponibilidade da polícia se para a lei são os juízes os senhores das escutas? Ou será que, como se percebe pelas palavras dos nossos governantes e deputados, afinal para o poder político aquela é matéria das polícias, constituindo a reserva do juiz inscrita na lei apenas pura cosmética? Mas, se assim é, porque razão se admiram do estado policial que criaram e todos querem, apesar de tudo, manter? Nenhum juiz poderá com autoridade responder a esta questão, mas não nos podem negar o direito, eu diria o dever, de exigir de quem sabe a resposta que a revele de forma clara para que todos nós, portugueses, possamos compreender! Uma coisa é certa: não é mexendo, mais uma vez, nos códigos que se resolvem estas questões.
Entretanto, é tempo de os juízes de instrução deixarem de pactuar com a inoperância do sistema! No dia em que se libertarem da violentíssima pressão causada pela responsabilidade moral de, com o seu indeferimento, ficar por desvendar aquilo que para os investigadores - com a bênção sempre presente do MP - é mais uma vez o crime do século, nesse dia estou certa que encontrarão na própria polícia de investigação a primeira força de pressão para a alteração da actual situação. Resta saber em que sentido. Ora, sendo também neste campo que se joga a independência dos juízes e, com ela, a garantia dos direitos das pessoas, é também aqui que a associação tem um caminho a percorrer. Não chegam as vozes isoladas de alguns juízes. Em Paris, neste preciso momento, decorre o 39º congresso do Syndicat de la Magistrature. O apelo feito aos participantes tem a simplicidade da mobilização pelas grandes causas: “POUR LES LIBERTÉS”.
Como segundo exemplo do meu inconformismo elegi um aspecto da vida dos juízes exterior aos tribunais, mas nem por isso com menores reflexos negativos no prestígio e dignidade de toda a classe profissional. Deixem-me designá-lo como uma moda lamentável: a moda de juízes serem escolhidos (aceitarem ser escolhidos e, em especial, o CSM permitir que sejam escolhidos) para cargos de manifesta confiança política de quem os nomeia (e exonera).
A minha crítica não se dirige, naturalmente, aos próprios juízes alvo das referidas “nomeações”. Quantos deles conheço pessoalmente, muito prezo e tenho na conta de excelentes aplicadores do direito. Também por isso fazem mais falta nos tribunais! O que procuro denunciar são os efeitos que cada uma daquelas nomeações provoca na generalidade da população e que até hoje têm sido ignorados por nós todos enquanto associação dos juízes portugueses. Manifestam-se em duas vertentes que aqui referirei de forma breve, como o tempo exige.
Uma primeira, naturalmente, relacionada com a imparcialidade e independência do juiz e a imagem que desse juiz passa para o exterior e designadamente também para os cidadãos que um dia por ele serão julgados, pelo menos se voltar a julgar em 1ª instância quando cessar a comissão de serviço. Para mim é tão escandaloso que juízes possam encontrar-se em exercício de funções dependentes de confiança política, mesmo (ou especialmente) enquanto superintendem e dirigem serviços de polícia e depois voltarem a julgar matéria crime, que não percebo como pôde uma tal prática até hoje ter merecido de uma associação de juízes apenas o silêncio. Como será possível a opinião pública levar a sério a nossa defesa da independência dos tribunais se depois vê, com frequência, juízes serem nomeados e destituídos de cargos que nada têm de independentes - ainda que seja com o fito de passar uma tal imagem para o exterior que as instituições persistem em cativar juízes para aqueles lugares. Mas, se a minha sensibilidade vos parece excessiva, dêem uma espreitadela nos sites das associações dos juízes suíços ou austríacos e ficarão surpreendidos com o espaço ali reservado ao tema da imparcialidade do juiz. Não reside nela a essência da Justiça? Já em 1982 o TEDH negou a um tribunal belga o reconhecimento da sua imparcialidade por o respectivo presidente ter sido anteriormente, enquanto magistrado do MP, director do departamento onde correra o inquérito ainda que não tivesse tido qualquer intervenção no mesmo.
Há, porém, uma segunda vertente a considerar na aceitação de uma tal prática pela nossa classe profissional. E, se a primeira me preocupa como cidadã, a segunda preocupa-me especialmente como profissional: se um juiz aceita trocar a nobreza das suas funções de julgador e decisor do direito pela actividade administrativa, se aceita suspender a sua independência pela sujeição a orientações políticas dos governantes, seus superiores, - e são de cada vez mais aqueles que o fazem - é porque já não é mera insatisfação o que se detecta no exercício das funções judiciais. É frustração! E quando uma tal frustração se repete em múltiplos e BONS juízes é porque algo vai efectivamente muito mal nos tribunais. VAI MAL O GOSTO DE SER JUIZ e este deveria ser já um especial sinal de alerta para os nossos governantes. Por este andar, um dia destes ainda veremos juízes preferirem um qualquer lugar na Administração ao de Conselheiro no Supremo Tribunal de Justiça. E se permitirmos que assim seja, longe de nos aproximarmos, estaremos a afastarmo-nos da concretização das palavras do Presidente do STJ na abertura deste congresso. Lembram-se?: os juízes não estão e não querem estar acima da lei. Mas, enquanto titulares de órgãos de soberania só aceitam falar com os outros poderes de IGUAL PARA IGUAL.
Será que entre nós juízes ainda há quem acredite que a colocação nesses cargos, pela proximidade proporcionada com os governantes, nos confere maior poder? “Servir num gabinete ministerial é, para um magistrado, o sinal de um compromisso político, por vezes mais aparente que real, e desde há bastante tempo, é essa uma das vias de acesso mais rápidas aos lugares da hierarquia”, observou de há muito o magistrado François Colcombet. Que terrível equívoco sobre a natureza do poder!
É minha profunda convicção que são denúncias destas que os cidadãos esperam de nós. A nossa imparcialidade não deve confundir-se com indiferença. Como dizia o Presidente da ASJP, Desembargador Batista Coelho – “ quando na praça pública a Justiça é descredibilizada (…) quem sai a ganhar é quem não convive bem com um poder judicial forte e independente”.
Vou terminar:
Ao visitar as instalações, de uma dignidade sem par, do Supremo Tribunal Federal de Brasília, deparei com uma placa com a seguinte citação de um discurso proferido por Kubitschek: “A grandeza de uma nação repousa em sua ordem jurídica, de que a expressão mais alta é a aplicação do direito pelo sentimento de Justiça e a sabedoria dos seus magistrados.” O edifício situa-se mesmo em frente ao palácio do governo na Praça dos Três Poderes (ao centro situa-se o Parlamento com as suas duas Câmaras: Senado e Congresso). Quem a visita fica com uma certeza: o mentor daquela cidade acreditava na divisão dos três poderes e no equilíbrio entre eles.
Por cá, ao “Repensar o Poder Judicial” Paulo de Castro Rangel refere: a “nossa constituição judiciária vive (…) – um tanto esquizofrenicamente – (…) dois tempos, quando faz dos juízes verdadeiras reincarnações de Jano: com uma face voltada para o passado, simples funcionários qualificados; com a outra virada para o futuro, erigindo-os em autênticos titulares de órgãos de soberania. Uma primeira reforma – refere ainda o mesmo autor - deve visar justamente dar o golpe final na concepção do juiz-funcionário, com tudo o que isso implica (mesmo para «garantias» dos juízes como a liberdade de associação sindical ou um eventual direito à greve (…) É tempo, com efeito, de os juízes serem definitivamente assumidos – e se assumirem … - como titulares de órgãos de soberania.” – fim de citação
É minha opinião que existe pleno espaço em Portugal para a existência de associativismo entre os juízes. Não percamos, porém, a oportunidade de sermos nós, a Associação dos juízes portugueses, a dar o primeiro passo naquela assunção! O Presidente do STJ já o começou: cabe-nos a nós completá-lo. É isso que aqui proponho!
Maria de Fátima Mata-Mouros